quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Estranho caso dos membros desaparecidos - Conto




Estranho caso dos membros desaparecidos - Conto



Não posso precisar quando tudo começou. Lembro-me que a pouco e pouco fui perdendo a consciência dos meus actos, e imiscuído desses cuidados, a consciência sobre o meu corpo se foi deteriorando. Primeiro começou pela minha mão, que a pouco e pouco foi perdendo a sua força. Depois os meus membros inferiores, as minhas pernas e no final o meu tronco e cabeça. Mas para recapitular e vos contar o que se passou tento recordar as memórias que fui perdendo nesse episódio.
Era uma manha de chuva. Já no céu as nuvens rebentavam sob a terra e chovia de forma torrencial. Os pingos à semelhança de pequenas gotas desciam sob a janela do  quarto, estando eu deitado na cama. Conseguia vê-los a descer sob o alpendre, e mergulhado no sono ainda, deixei-me estar a ver esse triste bailado. Depois, levantei-me e vesti o casaco de linha grossa para me proteger da intempérie. Um griso frio apoderou-se da minha alma e regelei sentando-me na cama.
O primeiro torpor que senti foi na minha mão direita. Os dedos pareciam não se mover, e tentei sacudi-la para que ganhasse vida, mas nada. Nem o duche quente pareceu acordar os dedos daquele torpor que a pouco e pouco se apoderava do meu corpo. Depois do duche, vesti a roupa, e fui até à cozinha. Uma cozinha de tons lilases, com uma mesa ao meio, e duas cadeiras na qual me sentei para beber um copo de leite. Olhei para o relógio e seriam umas oito da manha. A minha mulher ainda estava deitada, mas ouvindo-me dirigiu-se a cozinha ainda no seu robe castanho. Os seus cabelos desciam-lhe sobre o tronco, e os  olhos azuis, como duas pérolas num oceano de luz, desejaram-me um bom dia.
- Olá querido. Disse-me com uma ternura na voz.
A noite passada tinha sido de uma entrega de amor aos nossos corpos, com gemidos de prazer que clarearam os meus sentidos que agora pareciam estar empobrecidos por aquela súbita falta de contacto que sentia na minha mão.
- Bom dia. Respondi-lhe, ao que ela se aproximou de mim dando-me um beijo na boca.
-     Sabes Amanda, esta manhã sinto-me esquisito. E de facto sentia-me estranho, um torpor como já vos contei na minha mão direita, e a dificuldade em tentar mover os dedos.
- Como assim? Questionou olhando para mim.
- A minha mão Sinto um entorpecimento na minha mão direita.
Ela olhou para mim, pegou-me na mão e fez-lhe uma breve massagem. Senti os seus dedos nos meus, mas aquela curiosa sensação não parou de desaparecer. Era como se a minha mão tivesse perdido a vontade própria e desaparecesse no espaço. Como se faltasse ali um membro, e este estivesse decapitado.
Dei-lhe outro beijo na cara e exclamei.
- Não há-de ser nada.
 Mas de facto a  sensação de ausência não desaparecera. Nem com a sua breve massagem os dedos pareciam ganhar outra vida, e a mão a pouco e pouco ia perdendo a sua elasticidade.
Até o copo de leite tive que levantar com a mão esquerda, porque a direita já não respondia aos meus comandos.
- Querido queres que vá contigo ao hospital?  Perguntou-me Amanda.
- Julgo não ser necessário. Respondi-lhe tentando mexer a mão.
Ela sentou-se ao meu colo e disse-me ao ouvido.
- Porque não vens mais um pouco para a cama. Pode ser que te passe. Faço-te uma massagem especial. Senti a sua língua na minha orelha, e abraçando-a respondi que necessitava de ir lá fora ao supermercado e que mais tarde quando regressasse ela faria a tal massagem.
Mas a verdade é que não estava com vontade para a massagem. Os sentidos da minha mão pareciam desaparecer, e apenas um breve relevo sentido era o pouco que eu conseguia discernir.
Olhei pela janela da cozinha e continuava a chover. Uma chuva morna que aclarava o ambiente, pelo que peguei no meu casaco e despedindo-me de Amanda dirigi-me até lá fora.
Desci as escadas do prédio, passo a passo devagar, enquanto conseguia conduzir pela mão esquerda no corrimão da escada. Na rua, a chuva caia em abundância e eu para me proteger, acedi ao guarda-chuva enquanto me dirigi até ao carro.
No carro tive muita dificuldade em conduzir. A mão direita que controlava as mudanças, custava a responder ao meu comando. Fui devagar, desacelerando com a embraiagem, e tentando não ter nenhum acidente, pois seria chato que naquelas condições tivesse que me preocupar agora com um arranjo do carro.
Conduzi até ao supermercado local. Estacionei o carro à  porta, e ao sair o enorme letreiro dizia o nome do supermercado, bem encostado a zona onde havia estacionado.
Quando ia a entrar, dirigiu-se até mim um dos meus vizinhos que me perguntou.
- Por aqui tão cedo João?
- Olá Henrique Respondi-lhe com um sorriso na cara, bem que ainda forçado pela situação em que estava envolvido.
- Parece que ontem houve um dilúvio sobre a cidade. Disse-me Henrique, que entretanto estava a sair com as compras mas na área coberta ainda pelo supermercado, onde não chovia, embora a chuva já cessasse de cair com tanta violência e o sol parecia querer mostrar a sua face.
- É verdade. Ontem choveu a rodes. Como está a sua esposa? Perguntei.
- Está óptima, obrigado. Ontem regressamos da terra.
- Muito bem. Respondi.
- E a Amanda?
- Amanda ficou em casa a tratar das coisas para o almoço. Vem cá a minha sogra almoçar com o meu sogro. O que era uma prática habitual naqueles dias de Domingo.
- Bom almoço João.
Despedi-me de Henrique e entrei no supermercado.
A sensação de ausência da minha mão começava a ganhar uma força própria, e agora sentia essa sensação a alargar-se ao restante braço, com um torpor que parecia aumentar à medida que o tempo passava.
Dirigi-me à zona dos congelados. Enfiei a mão dentro da arca frigorífica e foi isso que me acalmou um pouco. Reparei naquele momento na quantidade de coisas que o supermercado vendia em termos de congelados. Nunca tinha visto nada assim. Era marisco para preparar com arroz, ou era solhas de peixe, carapaus e um número quase infindo de coisas para preparar para a merenda.
Quando retirei a mão da arca frigorífica, esta tinha desaparecido. Fiquei atónito, pois não sentia qualquer sensação nela. Ou era um truque de óptica ou de facto a mão desaparecera mesmo. Tentei abanar o braço, mas parecia estar a ficar embrutecido.
Chamei a funcionária da peixaria e dirigindo-me a ela a cambalear perguntei com ar intrigado e constrangido:
- A senhora consegue ver a minha mão.
A mulher olhou nos meus olhos, e fez uma expressão horrorizada quando me disse:
- Que mão é que o senhor está a falar. Vejo duas mãos.
Acenei-lhe com a mão esquerda.
- Esta você vê e eu também, mas esta a direita?
A mulher olhou intrigada para mim a pensar que eu era louco e disse que sim que via a minha mão direita, não deixando transparecer a sua expressão admirada pela pergunta que lhe fazia.
Sai do supermercado a correr e dirigi-me para os lavabos que ficavam mesmo ao lado.
Lá dentro, olhei ao espelho e de facto via a minha mão reflectida, mas quando olhava directamente para ela, esta já não estava lá.
Que estranho caso se havia apoderado de mim. A minha mão reflectia-se no espelho, mas uma sensação de entorpecimento havia-se instalado em mim.
- Devo estar louco. Pensei comigo mesmo.
Então acalmei-me, passando o meu rosto pelo pequeno fio de água da torneira e chapinhando com a mão esquerda, e relaxei um pouco.
- Isto deve ser da merda dos comprimidos que o psiquiatra me receitou. Pensei para mim mesmo. Por isso vais-te acalmar e vais novamente dirigir-te para o supermercado para fazer as compras que estão a faltar para o almoço.
Acalmei, e olhando para a mão que não via, dirigi-me novamente para o supermercado para fazer as restantes compras.
Peguei no carrinho das compras com a mão esquerda uma vez que a mão direita não existia e não respondia aos meus comandos e dirigi-me para a zona da fruta.
Tinha de comprar laranjas e maçãs que faltavam lá em casa e que tanto a minha sogra gostava, mas não conseguia deixar de pensar na mão ausente.
E então ao dirigir-me para a zona da frutaria esbarrei contra a montra das bananas fazendo-as cair ao chão, e isto porque não conseguia ver a mão direita. Ela atrapalhava todos os movimentos que fazia, e por mais misterioso que seria o caso, era uma sensação de ausência que se via apoderada de mim, e dos meus sentidos.
Consegui contudo comprar tudo o que pretendia, e mesmo com aquela sensação da mão que se estendia a todo o meu corpo, começando agora pelo restante braço, acabei por depositar as compras junto à caixa de pagamento.
- São 49 euros.
Pedi à funcionária que me ajudasse a colocar as compras nos sacos, pelo que ela vendo o meu ar constrangido e preocupado acedeu ao meu pedido.
Colocamos as compras nos sacos, e entretanto, peguei-os com a mão esquerda depois de pagar com cartão de crédito.
- A mulher deve pensar que sou louco, só a utilizar a mão esquerda para fazer as coisas, pensei.
Mas ela lá voltou à sua lide, e não deve ter pensado mais no assunto, porque já estava a atender outro cliente. Com a mão esquerda peguei os sacos e dirigi-me para o carro. Preocupava-me como seria possível conduzir só com uma mão, uma vez que a direita desaparecera e o braço parecia ir pelo mesmo caminho. Apenas se via a manga da camisola a tapar todo aquele embaraço de órgãos que visivelmente para mim haviam desaparecido.
Lá fora acabara de chover, e o sol no céu começava a surgir do encoberto das nuvens no horizonte.
Coloquei as compras na mala do carro, e entrei dirigindo com a mão esquerda que colocava as mudanças com algum cuidado, indo a dirigir com alguma prudência.
Recordo-me de chegar a casa por volta das onze da manhã, e ter aberto a mala do carro com a mesma mão que pegava nas compras, mas era agora o braço que me preocupava. Deixara de sentir o braço direito, e aquela estranha sensação parecia estar a invadir o meu restante corpo. Para já era apenas o braço que deixara de sentir, e por isso, entrei no prédio com as compras dirigindo-me para casa.
Subi as escadas com algum esforço, e pousando as coisas no chão, abri a fechadura.
Amanda estava na casa de banho a tomar banho, pelo que deixei a estar descansada e dirigi-me para a cozinha para pousar os sacos.
O reflexo dos azulejos sobre os meus olhos não mitigavam aquela sensação estranha de ficar em poucas horas sem a minha mão direita e um torpor leve se estar a apoderar agora do restante braço.
Depois de Amanda sair da casa de banho e ainda com a nuvem de água quente que embaciava o espelho, despi a camisola e olhei para o braço que havia também desaparecido. Em poucas horas tinha desaparecido a minha mão e o braço agora também ia pelo mesmo caminho. O que eu não faria para parar aquela situação.
Mas de facto havia pouco a fazer. Era como que um constrangimento que invadia todo o meu corpo e me deixava perplexo.
- Querido já chegaste? Perguntou Amanda.
Do lado de fora da casa de banho, e tentando esconder-lhe a situação exclamei.
- Sim Amanda. Estou na casa de banho e já saio.
Entretanto apressei-me a vestir a roupa antes que Amanda me perguntasse o que se passava.
 O que lhe iria dizer?, pensei: - A minha mão direita desapareceu e o meu braço também está a desaparecer. Seria de loucos, e ela ficaria irritada comigo a pensar que teria alguma coisa a ver com o facto dos pais dela virem almoçar a nossa casa.
Por isso, vesti-me rapidamente e sai da casa de banho dirigindo-me a cozinha.
Amanda estava no quarto a vestir-se e depois saiu na minha direcção dando-me um beijo no rosto.
- Já estas melhor da mão?
- Nem por isso. Respondi-lhe tentando infelizmente movê-la mas sem qualquer resposta. Mas há-de passar.
- Vou preparar o almoço, queres-me ajudar? Perguntou-me.
- Sim amor.
Amanda começou a fazer uma sopa, e aqueles vapores começaram a deixar-me nauseado, com o cheiro que exalava.
- Vou fazer uma sopa e enquanto isso, podes cortar as batatas?
Respondi-lhe que com a mão assim não conseguia. Ela então aproximou-se de mim e pegando na mão direita que eu via ela levantar, fez-me outra pequena massagem para que os meus dedos deixassem de ficar embrutecidos. Mas o que eu via era uma manga da camisola e a falta da mão direita, que ela agarrava com tamanho carinho.
- Estás chateado pelos meus pais virem cá almoçar? Questionou-me.
- Não é isso amor é a minha mão que me dói bastante.
Então ela perguntou se queria que lhe passasse uma pomada para as dores, ao que acedi que sim, que podia passar, pelo que foi buscar o creme à casa de banho. Porem, não senti nada, e apenas via a manga do casaco com a mão ausente a ser massajada pelas mãos de Amanda, que com tanto carinho lhe passava o creme por cima.
Depois, pediu-me que fosse até à sala e que me sentasse a ver um pouco de televisão enquanto preparava o almoço, e que depois me chamaria se fosse preciso alguma coisa.
Lembro-me com a vaga recordação de estar a dar um documentário sobre pessoas a quem tinham amputado os membros, e que na verdade ainda sentiam que existia lá esse órgão suprimido, o que não me deixei de pensar na singularidade e coincidência de estar a dar um programa tão alusivo ao que eu estava a sentir.
Passado um bocado, e perto do meio dia e meio, tocaram à campainha. Eram os pais de Amanda, que tinham chegado a nossa casa.
- Querido podes abrir a porta?
- Sim, Amanda, eu vou lá. Respondi-lhe gritando da sala para que me pudesse ouvir, mas até a minha voz ia ficando com um fio de rouquidão, como se depois do braço aquele torpor se começasse a instalar ao meu tronco.
Respirei fundo e dirigi-me até à porta onde os meus sogros estavam a chegar.
- Olá João. Cumprimentaram-me.
- Bom dia. Respondi-lhes abrindo a porta. Vieram cedo.
- É que a senhora tua sogra queria ajudar Amanda no almoço. Exclamou o Sr. Silveira com uma expressão profunda no rosto.
A Sr.a Silveira deu-me um beijo no rosto e dirigiu-se para a cozinha. O seu marido ia para me cumprimentar, mas disse-lhe que estava com um pequeno problema na mão e que não podia cumprimentá-lo com a direita mas apenas com a mão esquerda, ao que ele olhou para mim de desdém, o mesmo desdém que tinha em relação à condução da minha vida. É que eu era um argumentista desempregado, e segundo a sua óptica, a vida de escritor não era vida para ninguém, o que ele considerava uma vida de quem não quer fazer nada, o que nos tinha já dado razões para várias discussões sobre esse tema, e em que ele saia sempre a ganhar. Porem eram os pais da minha esposa e eu não podia contrariá-los a esse respeito, pelo que o que sentiam por mim ficava bem evidenciado no seu rosto.
- Mas magoaste na mão? Perguntou-me.
- Sim esta manha acordei com ela a doer-me um pouco. Disse-lhe com um sorriso amarelo.
Por outro lado, a Sr.a Silveira, vinha com o seu casacão de peles, que mais parecia um casaco de caça à raposa do que outra coisa, e que me entregou para eu arrumar. Na cozinha ouvi Amanda a cumprimentar os pais.
Entretanto, a minha voz cada vez mais rouca, como se os meus pulmões estivessem a ser invadidos por uma nuvem de poeira, ecoava pelo corredor.
-Sr. Silveira aceita um whisky? Perguntei ao pai de Amanda que tinha vindo ter comigo à sala.
- Sim rapaz, com duas pedras de gelo.
- Amanda temos gelo ai no frigorífico? Perguntei gritando da sala em direcção à cozinha.
- Sim querido, já levo.
O pai de Amanda sentou-se ao meu lado no sofá da sala. Não é propriamente uma sala grande. Tem uma televisão que fica à frente do sofá, dividida por um pequeno móvel onde coloquei os copos de whisky.
Com a mão esquerda coloquei o líquido nos copos, e com a mesma mão fechei a garrafa que deixei em cima dessa pequena mesa.
O meu sogro começou a falar.
- Quando era da tua idade bebia dois whiskys e era como se fosse água. Realçando a sua valentia. Mas era quando tinha a tua idade. Sabes, o whisky faz bem ao coração porque desentope as artérias.
- Não me diga Respondi com a voz cada vez mais rouca.
- É verdade! Faz muito bem ao coração! Insistiu olhando nos meus olhos.
Passado um pouco, e não sei se foi pelo whisky que bebi a minha perna esquerda começou a perder a vontade, e comecei a coxear um pouco quando nos dirigimos para a mesa de almoço.
- Então já encontraste emprego. Perguntou a minha sogra.
- Sra Silveira, já lhe disse que sou argumentista, mas neste momento as coisas estão complicadas para nós. Infelizmente o cinema está pela rua da amargura e andam a contratar poucos argumentistas.
- Pois sim. Respondeu-me a velha. Que raios que me deixou mesmo irritado. A par disso, a minha perna esquerda tinha-me deixado de responder, e coxeava um pouco. Amanda olhou para mim com uma expressão de ternura e perguntou.
- Está tudo bem querido?
- Sim Amanda, é só uma dor na perna.
Dirigimo-nos então para a mesa de almoço e sentamo-nos. Sentia o meu corpo a cambalear de vazio, e a parte esquerda do mesmo parecia estar também a desfalecer, o que criava um reduto de sombra que parecia estar a invadir todo o meu corpo.
Coloquei a comida no prato, e desistindo do braço direito comecei a comer com uma voracidade aparente que até os pais de Amanda repararam. Era como uma necessidade de preencher um qualquer vazio que se apoderara do meu corpo. Como se aquela comida que eu levava à boca com a mão esquerda pegando no garfo, embora eu fosse destro, me preenchesse aquele desaparecimento súbito dos órgãos.
- Assim a comer ainda te engasgas rapaz! Exclamou o Sr. Silveira.
Mas a comida sabia-me tão bem que não liguei à provocação do velho tolo, que insistentemente me provocava sem qualquer motivo.
- Passas-me a salada amor?
E quando ia a passar a salada a mesma sensação começou a surgir na mão esquerda, com o torpor usual a preencher cada um dos meus dedos, que procuravam descanso, e que parecia inusual.
Entretanto passei a salada a Amanda, que me agradeceu.
O Sr. Silveira começou o diálogo.
- Sabes Amanda, penso que deviam mudar para uma casa maior, quando tivessem filhos.
Disse com uma expressão assertiva no rosto.
Ia a responder e com a ausência da mão direita quase que derrubei a garrafa de vinho tinto sobre a mesa.
- Sr. Silveira já falamos sobre isso.
Respondi, uma vez que o pai de Amanda já sabia a minha opinião em ter filhos e não era uma decisão a ter a curto prazo face ao facto de estar sem emprego de momento.
- Mas têm que pensar sobre isso. Respondeu a Sr.a Silveira Já não são propriamente novos e deve estar nos vossos planos terem filhos.
Aquela resposta irritou-me e com a perna direita que parecia estar a ficar também dormente, dei sem querer um pontapé na perna da mesa a que a fez abanar um pouco.
- Estás bem querido? Perguntou a Amanda com aquela resposta inusitada e com o pontapé imprevisto sobre a mesa.
- Sim amor. É que já tivemos esta conversa com os teus pais uma dúzia de vezes.
Sr.a Silveira olhou para mim com uma expressão reprovadora.
- Passa-me a garrafa de vinho João.
Pediu o Sr. Silveira.
Passei com a mão esquerda, mas o torpor fê-la desviar-se e cair sobre o colo do velho.
- Cuidado João. Foram as palavras de Amanda.
- Ai, desculpe Sr.Silveira. Respondi pelo acto de descuido.
- Ora bolas Gritou o velho olhando para mim pronto a praguejar.
Mas calou-se e Amanda foi buscar à cozinha um pano para limpar o pai.
- Peço desculpa, é que as minhas mãos doem-me um pouco e parece que estão dormentes.
- Tenha cuidado para a próxima vez. Respondeu o velho.
No final do almoço mal podia levantar a mão esquerda, e a consciência desse facto fez-me sentar no sofá da sala, de onde não me levantei nas próximas horas.
Contudo, ouvia atrás de mim, pois a mesa do almoço ficava atrás do sofá, a Amanda a dizer aos pais para não ligar de eu ter-me levantado tão cedo da mesa, porque andava cheio de problemas por estar desempregado.
Aquilo fez-me ficar furioso, porque não estava desempregado, não era assim que me sentia, mas sim um argumentista que andava sem trabalho, e que a qualquer momento podia ser contratado.
A mão esquerda ainda respondia bem aos meus comandos, mas por pouco tempo. O que me preocupava mais era a perna direita que havia deixado de responder aos meus desejos.
- Mas querido vais arranjar emprego, eu sei que sim. Ouvi a Amanda dizer na minha direcção, enquanto os pais olhavam de lado para mim, sentado no sofá a ver o programa da tarde na televisão. Embora eu estivesse ali sentado porque já tinha sérias dificuldades em caminhar.
Quando os velhos se foram despedir de mim, levantei-me com a força da perna esquerda e cambaleando despedi-me deles desculpando-me.
- Não sei o que tenho hoje mas parece que o meu corpo resolveu contrariar-me.
E ri-me alto. Já não sabia o que dizer.
O Sr. Silveira olhou de lado para mim e exclamou.
- Claro é o que dá estar desempregado. Ao que anui engolindo em seco mais uma das suas provocações mesquinhas.
Quando eles saíram fechei-me da casa de banho, enquanto Amanda arrumava o resto das coisas da mesa de almoço.
- Está tudo bem querido?
Ouvia do lado de fora ela a perguntar.
- Sim, está tudo bem Respondi-lhe.
Mas olhando o meu corpo no espelho, cambaleando com a falta da perna direita todo o meu tronco parecia vazio e não sei como me aguentava em pé. Era de facto estranha aquela sensação de adormecimento. E a voz cada vez mais rouca que se incutia pelos meus pulmões.
Assim fiquei sentado sob a sanita, em cima do tampo, enquanto o meu corpo se desarticulava, até que desapareceu na sua totalidade.
Foram os gritos da minha esposa que ouvi, quando ela me encontrou de tronco caído na casa de banho, sem qualquer força.
Depois apenas me lembro de os paramédicos entrarem em casa e me levarem ao colo e depois numa maca para o hospital mais próximo.
Lá no hospital, a conclusão a que chegamos é que eu tinha contraído o vírus dos órgãos entorpecidos, que tinha surgido de um raro mosquito de África e que obrigava que o corpo estivesse de repouso durante alguns dias.
Mas ninguém conseguia explicar as alucinações de deixar de ver o corpo, mas julga-se que isso se deve à minha doença bipolar, que pode devido ao vírus, ter levado a contrair uma psicose aguda que me levou a reviver aquilo.
Sei que é uma história estranha, e que roda o absurdo mas depois de uns dias pude sair e regressei a casa. E foi assim que tudo sucedeu.

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