Era uma vez um espantalho feito de palha, cujo corpo
envolvido em uma estaca de madeira com um fio lhe dá a consistência de um
farrapo maleável, coberto por uma ganga velha onde as espigas se contorcem com
a sua imobilidade.
Isso permite a sua identificação pelas criaturas que se
aproximavam para tomar para si o que ele protegia, tal como os corvos negros
que no cair da noite se aproximavam, enquanto o espantalho com a ajuda do
vento, movimentava desenfreadamente o seu corpo de tábuas, numa tentativa de
frustar as suas tentativas.
Porem devido à sua fragilidade, por vezes quebrava face ás
intempéries do mundo, tal como sucedia em dias de chuva cerrada ou de forte
vento.
Dessa sua pouca sorte, sina talvez, fado ou missão, apenas na
sua cumplicidade com o que lhe seria destinado, ele se embutia em serenidade,
quando pouco tecido já lhe cobria nesses temporais, para ser depois restituído
como novas camadas de palha.
Os campos perdiam-se por essa planície, que se estendia por
um caminho rústico que iria dar a uma zona onde se pode avistar todas a
povoação e suas casas antigas.
Compreendendo que daquele esforço dos aldeões, do suor que
lhe cai do rosto, no mesmo rosto onde as ruas revelam o seu sacrifício, era o
seu ganha pão, o seu sustento para os dias, que eles avistavam com tanta
tenacidade, face à impressibilidade da natureza.
A dança dos bichos no céu assemelhava-se à luta da vida, em
que os corvos se aproximavam com as suas garras para se apoderarem dos
alimentos, enquanto o espantalho dizia:
- Vão embora que isto não vos pertence!
Ao que eles em círculos sedentos de fome, se preparavam para
um novo ataque. O espantalho com a força das tábuas que ele manuseava com
estranho equilíbrio, lhes desferia um novo golpe que os deixava momentaneamente
atordoados.
Pelo que tinha também o apoio dos outros pássaros que sob os
seus ombros expulsavam os corvos que partiam no céu, perdendo-se no horizonte.
- Nunca te cansas espantalho, sempre na mesma posição,
vivendo imerso nessa tragédia de afastar os malditos corvos, que tal como
sombras se tentam apoderar das esperanças dos que nos seus cultivos, guardam
com tanto amor o que lhes custou a alma em sofrimento e suor?
Diriam os pássaros ao aproximar-se, e cujo som ele
compreendia por além de falar a linguagem dos homens, também falava a linguagem
dos bichos.
- A lua também está sempre no mesmo local, tal como é de sua
natureza iluminar a terra com o seu brilho no céu escuro, também a mim preso a
este corpo de tábua velha, cabe-me proteger este pequeno espaço, tal como os
que se conformam com o destino que o homem lhes deu.
Os pássaros que voavam no céu não compreendiam como podia o
espantalho perder a oportunidade de conhecer um mundo tão grande, para ali permanecer agarrado a
uma tábua cravada no solo, como se o seu destino se tivesse que apaziguar a
esse fatalismo.
Perguntavam-lhe se teria sonhos:
- Tens sonhos espantalho? Chilreavam rápido com movimentos
repentinos partindo pelo céu com suas asas.
Perdido nessa pergunta, o espantalho olhava as noites que
passavam e em que os campos por fim repousavam, e questionava-se se teria
sonhos. Afinal não passa de um espantalho. Uma criação do homem feito de palha
agarrada por uns cordéis a essas tábuas que mal suportavam a água das chuvas ou
o vento em dias de temporal.
Mas talvez tivesse sonhos. Levantar-se um dia com a força do
seu tronco e quebrar a tábua que o prendia ao solo, para partir e conhecer o
mundo.
Afinal contavam-lhe histórias tão belas e magnificas que ele
havia de querer conhecer essas terras de mares gloriosos, ou de montanhas que
desaparecem imersas nas nuvens do céu.
E um dia ao percorrer
o caminho em direcção ao mar, aquela parte do mundo onde os peixes falam a
linguagem da alma, ele pudesse mergulhar nas águas do conhecimento profundo e
trazer dele a sabedoria sagrada, tal com a razão da sua existência.
E nessas noites em que a lua iluminava todo esse serão, em
que a brisa no seu rosto lhe trazia a confirmação de que as colheitas haviam
dado felicidade aos seus cultivadores, ele ficava a olhar a enorme planície que
se perdia ao fundo num pequeno riacho, que desaparecia pelo caminho, com o
brilho das nuvens no céu, que ao sabor do mundo se tornavam como uma imagem do
divino que vinha naquele instante recorda-lo de para alem do seu corpo de
espantalho coberto de palha, uma centelha divina ressurgia em si, dando-lhe um
dom para alem da sua compreensão e que para alem da razoa e do intelecto, era
como um caminho do coração.
Num desses dias em que imperturbável tentava sacudir os
corvos negros que se aproximavam de si em investidas cada vez mais maldosas,
cravando nas suas costas as garras afiadas e colocando sobre os seus ombros a árdua
tarefa que o havia sido embutida como espantalho, surgiu por aquela estrada um
coche com um serviçal e sua majestade, Del Rei, que vinham ver as terras
concedidas para cultivo e cuja parte lhes era concedida como prémio.
Um belo coche desenhado sob figura de nobreza, revestido a
ouro, que institui a mais elevada patente do castelo situado no cimo da colina
e rodeado por muralhas onde residia o clero e a nobreza.
O cocheiro desceu do coche e movimentando os braços,
agitando-os de forma trapalhona disse xo xo, para que os corvos partissem para
longe da terra, ao que com o aviso eles partiram planando por aquelas terras ao
longe, enquanto outros desceram pela outra colina em direcção ao riacho.
O Rei desceu no seu magnifico coche, enquanto os cavalos
sossegaram, e estendendo o seu magestoso manto partiu estrada abaixo, pelo que
iria observar os seus cultivos, e regressaria num instante, demorando pouco
tempo e aproveitando para falar com alguns dos seus súbditos que ao longe
trabalhavam nas terras, calejados de costas dobradas no chão e ao braseiro do
sol que naquele dia zombava no céu.
O cocheiro iria permanecer por ali, ao que o espantalho o
chamou dizendo: - “pssss…” tentando chamar a sua atenção. “ Ei, tu aí…” disse
por fim.
- Ei lá ! Ei lá ! Um espantalho falante em terras de El Rei.
– Disse o cocheiro com a sua voz meio apatetada e virando-se rápido na sua
direcção. Aproximou-se para o olhar melhor e concluiu que se tratava de um
espantalho pouco assustador, engraçado que não assustaria qualquer corvo.
- Põe-me o chapéu na cabeça por favor! Esse que os corvos
atiraram ao chão. - Pediu o espantalho ao cocheiro.
O cocheiro aproximasse com cuidado para não estragar as
terras del rei e pega no chapéu colocando-o por cima da sua cabeça, perguntando
se ele não se cansava de passar ali os dias sob aquele tempo de sol abrasador,
e afastando os corvos que insistiam a todo o instante para roubar a comida
daquelas gentes.
O espantalho equilibrou-se e respondeu que era esse o seu
oficio, o de proteger as colheitas.
O rosto do cocheiro ficou imóvel e depois soltou uma
gargalhada:
- Pois bem, que sejas feliz assim! – Replicou por fim.
- E tu nunca te cansas
de conduzir del ´Rei no seu coche.
- Eu não, eu não! – Respondeu. – Faço também malabarismos,
truques de circo, macacadas no trapézio. – E pôs-se a dançar, saltando e
movimentando-se como um tonto.
- E não te cansas de ser pateta – Exclamou o espantalho com
tom irónico.
- Não é maravilhoso! – Sorriu o cocheiro, pulando e dançando
como se responde-se com mais veemência ao suposto insulto do espantalho sem lhe
dar pouca importância.
- Como te chamas? Perguntou-lhe, que se rejubilava com o
facto do espantalho estar ali pregado e ele ter toda a liberdade da vida para
pular e dançar.
- O meu nome é Orlando! – Respondeu o cocheiro. – Primeiro
quando nasci puseram-me o nome de Fernando até que um dia com a minha miopia
crescente e com o meu ar de enfezado, a minha avó e as minhas tias, depois de
ter sido abandonado pelos meus pais, que não tinham forma de sustentar um
malandro, puseram-me o nome de Orlando. É uma forma de dizer: não és tanto
tonto, nem tanto lindo.
Finalizou dando um pulo no ar de contentamento.
- E tu, e tu que nome te deram – perguntou ao espantalho.
- Não tenho nome nenhum – Respondeu.
- Claro que tens! Toda a gente tem um nome!
O Espantalho nunca tinha pensado nisso. Não tinha um nome,
uma identificação que o pudesse afirmar como humano, sendo assim uma mistura de
farrapos com um poucochinho de alma, que contudo lhe permitiam sonhar sonhos
absurdos, como o de ver o mar e mergulhar na sua profunda sabedoria, renascendo
para além do farrapo de homem que era, e que mesmo nessa centelha de espírito
que nascia a cada dia dentro dele, se ia conhecendo melhor e a sua humanidade.
Olhou o horizonte para além do rosto do cocheiro, que se chamava
Orlando mas cujo nome de nascença era Fernando, mas que depois da adopção pelas
tias e avó e pelo seu ar enfezado de miúdo malandro e maldoso, lhe havia sido trocado.
Com a crescente miopia arranjaram-lhe uns óculos quadrados pretos de hastes
também pretas, que lhe permitiam ver melhor ao longe, mas que infelizmente ao
perto lhe tornavam tudo turvo, não o curando mas piorando o seu estado
degenerativo, cujos neurónios não abarcavam a sua infinitesimal inteligência
mal medida, dos tombos que o destino lhe havia de pregar pelas suas macacadas
no trapézio e malabarismos rascos que tanto alegravam os serões del´Rei, que
por aqueles instantes descia aquela estrada arrastando o seu majestoso manto
dourado!
- Coitado! Pensou o espantalho. – Pobre vida a do infeliz e
eu a pensar que a minha á árdua.
Olhou o rosto de Orlando com compaixão e compreendeu que
aquele estado de grande felicidade era apenas uma forma de esconder a sua
imensa inferioridade de uma vida madrasta de abandono e rejeição.
- Vamos arranjar-te um nome… Já sei! – Disse o Orlando como
se o seu rosto se iluminasse com uma ideia brilhante, que até o movimento das
suas orelhas pareceram deslocar um pouco da haste dos seus óculos, para a ponta
do seu nariz curvilíneo, olhando por cima das lentes, e de momento a fazer
recordar ao espantalho um corvo que se aproximava pela frente para lhe desferir
um golpe com as suas unhas no seu tecido de ganga, que tanto amor a ele tinha.
- Estapafúrdio – Exclamou. – Ide-vos chamar Estapafúrdio. E sorriu com um sorriso aberto, abrindo as
bochechas como quem se alegra do fundo da alma, com um acto tão caridoso que
era a de doar o espantalho que de assustar não tinha nada, com um nome que o baptizasse e lhe desse um pouco de personalidade, alem do carácter que é ser
espantalho.
Com a mesma reacção de há momentos, ter ficado assustado com
a mudança de tom no rosto de Orlando, o espantalho ficou a pensar no nome com
que o queria baptizar, e que embora não fosse muito a seu geito, sempre podia
conferir um pouco de personalidade que o
fizesse ser também uma pessoa, e tal como as pessoas, poder sentir
sentimentos, desconhecendo contudo que o seu coração de palha já incluía um pouco
dessa miríade de estados, que ele ao olhar o cair da noite, se parecia ser
abraçado pelo divino.
Por isso, talvez nem precisasse de nome, sendo espantalho na
sua forma única, e na sua fragilidade composto por palha, e tendo como função
afastar os malditos corvos, a sua própria identidade.
-Já sei! Emplastro. Replicou o Orlando coçando a cabeça, como
se lhe houvesse custado a queima de dois ou três neurónios, caso o dele,
irremediável, sendo uma situação insustentável a pouco prazo por estarem todos
em extinção.
Emplastro parecia muito bem e quis contar as razões do nome,
explicando que a sua escoljha não se remetia apenas ao aspecto gramatical, mas
envolvia grandes análises de raciocínio, que na cabeça de Orlando, se remetiam
a altas esferas de intelectualidade, de forma divina, como se o seu domínio
celeste sob todos os elementos quando fazia malabarismo, fosse para além dos
seus reflexos, um dom tão primata como a descoberta do fogo pelos nendertais, e
por isso emplastro incluiria tal como o seu nome de Orlando, uma reminiscência
a um estado tão tonto como de lindo.
Assim, dotando o
espantalho de personalidade não se sentiria tão sozinho no mundo.
Ia rematar o próximo nome quando El´Rei chamou.
- Orlando? Orlando? Pegue no meu manto, venha lá.
O dia tinha anoitecido, e o nevoeiro e as nuvens no céu,
criavam um tom bruxuleante, pelo que as pingas evaporavam ainda aos poucos raios que para alem da planície surgiam na solidão, e o som dos pássaros difundisse nesse escuro, e os corvos sobrevoavam em bandos até suas casas.
- Quando El´Rei souber que existe um espantalho falante por
estas bandas vai ficar espantado! Disse Orlando enquanto corria trapalhão em
direcção ao coche para pegar no manto
que se estendia ao comprido.
O Espantalho apenas teve tempo de ouvir:
- Não sejas tonto Orlando.
Pensou que falassem em relação ao facto de um espantalho ter
um dia personalidade e com isso sentimentos. Que um espantalho pudesse sentir
como um ser humano e como tal não ser colocado ao frio, à chuva e à intempérie
para desempenhar uma tarefa tão sacrificadora como a dos camponeses que
trabalhavam arduamente, para que El Rei pudesse percorrer naquela estrada com o
seu manto dourado, ostentando o seu poder e a sua riqueza.
Um espantalho não deixará de ser um espantalho, e Rei um Rei,
e talvez na tentativa de o imergir com um pequeno ego que fosse, com aqueles
nomes que lhe conferiam esse sinal na vida, ele pudesse ser alguém, e ter
importância para alguém.
Mas nessa forma absurda de pensar, em que se questionava nos
seus sonhos, o que dele poderia sonhar, Espantalho já se abraçava na sua
própria companhia, que na solidão da noite lhe era suficiente para bastar a si
próprio, como se ao despertar da centelha de vida, ao som das histórias que os
pássaros contavam ele perde-se no absurdo que seria recuperar um pouco da
consciência perdida na sabedoria do oceano profundo para o qual imergiria um
dia o seu olhar, o mar cujos som das ondas se escutavam no seu coração sempre
que soltasse o seu espírito pelo mundo, e a ele encontrasse quando a sua alma a
si voltasse.
E a partir daquele dia, foi batizado de Estapafúrdio ou
Emplastro.
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