Estranho caso dos membros desaparecidos - Conto
Não posso precisar quando tudo começou. Lembro-me que a pouco e
pouco fui perdendo a consciência dos meus
actos, e imiscuído
desses cuidados, a consciência sobre o meu
corpo se foi deteriorando. Primeiro começou pela minha mão, que a pouco e pouco foi perdendo a sua força. Depois os meus membros
inferiores, as minhas pernas e no final o meu tronco e cabeça. Mas para recapitular e vos
contar o que se passou tento recordar as memórias que fui perdendo nesse episódio.
Era uma manha de chuva. Já no céu as nuvens rebentavam sob a
terra e chovia de forma torrencial. Os pingos à semelhança de pequenas gotas desciam
sob a janela do quarto, estando eu
deitado na cama. Conseguia vê-los a descer sob
o alpendre, e mergulhado no sono ainda, deixei-me estar a ver esse triste
bailado. Depois, levantei-me e vesti o casaco de linha grossa para me proteger
da intempérie. Um
griso frio apoderou-se da minha alma e regelei sentando-me na cama.
O primeiro torpor que senti foi na minha mão direita. Os dedos pareciam
não se
mover, e tentei sacudi-la para que ganhasse vida, mas nada. Nem o duche quente
pareceu acordar os dedos daquele torpor que a pouco e pouco se apoderava do meu
corpo. Depois do duche, vesti a roupa, e fui até à cozinha. Uma cozinha de tons lilases, com uma mesa ao
meio, e duas cadeiras na qual me sentei para beber um copo de leite. Olhei para
o relógio e
seriam umas oito da manha. A minha mulher ainda estava deitada, mas ouvindo-me
dirigiu-se a cozinha ainda no seu robe castanho. Os seus cabelos desciam-lhe
sobre o tronco, e os olhos azuis, como
duas pérolas
num oceano de luz, desejaram-me um bom dia.
- Olá querido. Disse-me com uma ternura na voz.
A noite passada tinha sido de uma entrega de amor aos
nossos corpos, com gemidos de prazer que clarearam os meus sentidos que agora
pareciam estar empobrecidos por aquela súbita falta de contacto que sentia na minha mão.
- Bom dia. Respondi-lhe, ao que ela se aproximou de
mim dando-me um beijo na boca.
-
Sabes Amanda, esta
manhã
sinto-me esquisito. E de facto sentia-me estranho, um torpor como já vos contei na minha mão direita, e a dificuldade em
tentar mover os dedos.
- Como assim? Questionou
olhando para mim.
- A minha mão… Sinto um entorpecimento na minha mão direita.
Ela olhou para mim, pegou-me na mão e fez-lhe uma breve
massagem. Senti os seus dedos nos meus, mas aquela curiosa sensação não parou de desaparecer. Era
como se a minha mão tivesse
perdido a vontade própria e desaparecesse no espaço. Como se faltasse ali um
membro, e este estivesse decapitado.
Dei-lhe outro beijo na cara e exclamei.
- Não há-de ser nada.
Mas de facto a
sensação de
ausência não desaparecera. Nem com a sua
breve massagem os dedos pareciam ganhar outra vida, e a mão a pouco e pouco ia perdendo
a sua elasticidade.
Até o copo de leite tive que levantar com a mão esquerda, porque a direita
já não respondia aos meus
comandos.
- Querido
queres que vá contigo
ao hospital? Perguntou-me Amanda.
- Julgo não ser necessário. Respondi-lhe
tentando mexer a mão.
Ela sentou-se ao meu colo e disse-me ao ouvido.
- Porque não vens mais um pouco para a
cama. Pode ser que te passe. Faço-te uma massagem especial. Senti a sua língua na minha orelha, e abraçando-a respondi que necessitava de ir lá fora ao supermercado e que mais tarde quando
regressasse ela faria a tal massagem.
Mas a verdade é que não estava com vontade para a massagem. Os sentidos da
minha mão
pareciam desaparecer, e apenas um breve relevo sentido era o pouco que eu
conseguia discernir.
Olhei pela janela da cozinha e continuava a chover.
Uma chuva morna que aclarava o ambiente, pelo que peguei no meu casaco e
despedindo-me de Amanda dirigi-me até lá fora.
Desci as escadas do prédio, passo a passo devagar, enquanto conseguia conduzir
pela mão
esquerda no corrimão da
escada. Na rua, a chuva caia em abundância e eu para me proteger, acedi ao guarda-chuva
enquanto me dirigi até ao
carro.
No carro tive muita dificuldade em conduzir. A mão direita que controlava as
mudanças,
custava a responder ao meu comando. Fui devagar, desacelerando com a
embraiagem, e tentando não ter
nenhum acidente, pois seria chato que naquelas condições tivesse que me preocupar
agora com um arranjo do carro.
Conduzi até ao supermercado local. Estacionei o carro à
porta, e ao sair o enorme letreiro
dizia o nome do supermercado, bem encostado a zona onde havia estacionado.
Quando ia a entrar, dirigiu-se até mim um dos meus vizinhos que
me perguntou.
- Por aqui tão cedo João?
- Olá Henrique… Respondi-lhe com um sorriso na cara, bem que ainda
forçado
pela situação em
que estava envolvido.
- Parece que ontem houve um dilúvio sobre a cidade. Disse-me
Henrique, que entretanto estava a sair com as compras mas na área coberta ainda pelo
supermercado, onde não
chovia, embora a chuva já cessasse
de cair com tanta violência e o sol parecia querer mostrar
a sua face.
- É verdade. Ontem choveu a rodes. Como está a sua esposa? Perguntei.
- Está óptima, obrigado. Ontem regressamos da terra.
- Muito bem. Respondi.
- E a Amanda?
- Amanda ficou em casa a tratar das coisas para o almoço. Vem cá a minha sogra almoçar com o meu sogro. O que era
uma prática habitual naqueles dias de Domingo.
- Bom almoço João.
Despedi-me de Henrique e entrei no supermercado.
A sensação de ausência da minha mão começava a ganhar uma força própria, e agora sentia essa
sensação a
alargar-se ao restante braço, com um torpor que parecia aumentar à medida que o tempo passava.
Dirigi-me à zona dos congelados. Enfiei a mão dentro da arca frigorífica e foi isso que me
acalmou um pouco. Reparei naquele momento na quantidade de coisas que o
supermercado vendia em termos de congelados. Nunca tinha visto nada assim. Era
marisco para preparar com arroz, ou era solhas de peixe, carapaus e um número quase infindo de coisas
para preparar para a merenda.
Quando retirei a mão da arca frigorífica, esta tinha desaparecido. Fiquei atónito, pois não sentia qualquer sensação nela. Ou era um truque de óptica ou de facto a mão desaparecera mesmo. Tentei abanar o braço, mas parecia estar a ficar
embrutecido.
Chamei a funcionária da peixaria e dirigindo-me a ela a cambalear
perguntei com ar intrigado e constrangido:
- A senhora consegue ver a minha mão.
A mulher olhou nos meus olhos, e fez uma expressão horrorizada quando me
disse:
- Que mão é que o senhor está a falar. Vejo duas mãos.
Acenei-lhe com a mão esquerda.
- Esta você vê e eu também, mas esta… a direita?
A mulher olhou intrigada para mim a pensar que eu era
louco e disse que sim que via a minha mão direita, não deixando transparecer a sua expressão admirada pela pergunta que
lhe fazia.
Sai do supermercado a correr e dirigi-me para os
lavabos que ficavam mesmo ao lado.
Lá dentro, olhei
ao espelho e de facto via a minha mão reflectida, mas quando olhava directamente para ela,
esta já não estava lá.
Que estranho caso se havia apoderado de mim. A minha mão reflectia-se no espelho,
mas uma sensação de entorpecimento
havia-se instalado em mim.
- Devo estar louco. Pensei comigo mesmo.
Então acalmei-me, passando o meu rosto pelo pequeno fio de
água da
torneira e chapinhando com a mão esquerda, e relaxei um pouco.
- Isto deve ser da merda dos comprimidos que o
psiquiatra me receitou. Pensei para mim mesmo. – Por isso vais-te acalmar e vais novamente dirigir-te
para o supermercado para fazer as compras que estão a faltar para o almoço.
Acalmei, e olhando para a mão que não via, dirigi-me novamente
para o supermercado para fazer as restantes compras.
Peguei no carrinho das compras com a mão esquerda uma vez que a mão direita não existia e não respondia aos meus comandos
e dirigi-me para a zona da fruta.
Tinha de comprar laranjas e maçãs que faltavam lá em casa e que tanto a minha
sogra gostava, mas não
conseguia deixar de pensar na mão ausente.
E então ao dirigir-me para a zona da frutaria esbarrei
contra a montra das bananas fazendo-as cair ao chão, e isto porque não conseguia ver a mão direita. Ela atrapalhava todos os movimentos que
fazia, e por mais misterioso que seria o caso, era uma sensação de ausência que se via apoderada de
mim, e dos meus sentidos.
Consegui contudo comprar tudo o que pretendia, e mesmo
com aquela sensação da mão que se estendia a todo o
meu corpo, começando
agora pelo restante braço, acabei
por depositar as compras junto à caixa de pagamento.
- São 49 euros.
Pedi à funcionária que me ajudasse a colocar
as compras nos sacos, pelo que ela vendo o meu ar constrangido e preocupado
acedeu ao meu pedido.
Colocamos as compras nos sacos, e entretanto,
peguei-os com a mão
esquerda depois de pagar com cartão de crédito.
- A mulher deve pensar que sou louco, só a utilizar a mão esquerda para fazer as
coisas, pensei.
Mas ela lá voltou à sua lide, e não deve ter pensado mais no assunto, porque já estava a atender outro
cliente. Com a mão
esquerda peguei os sacos e dirigi-me para o carro. Preocupava-me como seria
possível
conduzir só com
uma mão, uma
vez que a direita desaparecera e o braço parecia ir pelo mesmo caminho. Apenas se via a manga
da camisola a tapar todo aquele embaraço de órgãos que visivelmente para mim
haviam desaparecido.
Lá fora acabara de chover, e o sol no céu começava a
surgir do encoberto das nuvens no horizonte.
Coloquei as compras na mala do carro, e entrei
dirigindo com a mão
esquerda que colocava as mudanças com algum cuidado, indo a dirigir com alguma prudência.
Recordo-me de chegar a casa por volta das onze da manhã, e ter aberto a mala do
carro com a mesma mão que
pegava nas compras, mas era agora o braço que me preocupava. Deixara de sentir o braço direito, e aquela estranha
sensação
parecia estar a invadir o meu restante corpo. Para já era apenas o braço que deixara de sentir, e
por isso, entrei no prédio com
as compras dirigindo-me para casa.
Subi as escadas com algum esforço, e pousando as coisas no chão, abri a fechadura.
Amanda estava na casa de banho a tomar banho, pelo que
deixei a estar descansada e dirigi-me para a cozinha para pousar os sacos.
O reflexo dos azulejos sobre os meus olhos não mitigavam aquela sensação estranha de ficar em
poucas horas sem a minha mão direita e um torpor leve se estar a apoderar agora
do restante braço.
Depois de Amanda sair da casa de banho e ainda com a
nuvem de água
quente que embaciava o espelho, despi a camisola e olhei para o braço que havia também desaparecido. Em poucas
horas tinha desaparecido a minha mão e o braço agora também ia pelo mesmo caminho. O que eu não faria para parar aquela
situação.
Mas de facto havia pouco a fazer. Era como que um
constrangimento que invadia todo o meu corpo e me deixava perplexo.
- Querido já chegaste? Perguntou Amanda.
Do lado de fora da casa de banho, e tentando
esconder-lhe a situação
exclamei.
- Sim Amanda. Estou na casa de banho e já saio.
Entretanto apressei-me a vestir a roupa antes que Amanda me perguntasse o que se passava.
O que lhe iria
dizer?, pensei: - A minha mão direita desapareceu e o meu braço também está a desaparecer. Seria de
loucos, e ela ficaria irritada comigo a pensar que teria alguma coisa a ver com
o facto dos pais dela virem almoçar a nossa casa.
Por isso, vesti-me rapidamente e sai da casa de banho
dirigindo-me a cozinha.
Amanda estava no quarto a vestir-se e depois saiu na
minha direcção
dando-me um beijo no rosto.
- Já estas melhor da mão?
- Nem por isso. Respondi-lhe tentando infelizmente movê-la mas sem qualquer resposta.
– Mas há-de passar.
- Vou preparar o almoço, queres-me ajudar? Perguntou-me.
- Sim amor.
Amanda começou a fazer uma sopa, e aqueles vapores começaram a deixar-me nauseado,
com o cheiro que exalava.
- Vou fazer uma sopa e enquanto isso, podes cortar as
batatas?
Respondi-lhe que com a mão assim não conseguia.
Ela então
aproximou-se de mim e pegando na mão direita que eu via ela levantar, fez-me outra
pequena massagem para que os meus dedos deixassem de ficar embrutecidos. Mas o
que eu via era uma manga da camisola e a falta da mão direita, que ela agarrava
com tamanho carinho.
- Estás chateado pelos meus pais virem cá almoçar? Questionou-me.
- Não é isso amor… é a minha mão que me dói bastante.
Então ela perguntou se queria que lhe passasse uma pomada
para as dores, ao que acedi que sim, que podia passar, pelo que foi buscar o
creme à casa de banho. Porem, não senti nada, e apenas via a manga do casaco com a mão ausente a ser massajada
pelas mãos de
Amanda, que com tanto carinho lhe passava o creme por cima.
Depois, pediu-me que fosse até à sala e que me sentasse a ver um pouco de televisão enquanto preparava o almoço, e que depois me chamaria
se fosse preciso alguma coisa.
Lembro-me com a vaga recordação de estar a dar um documentário sobre pessoas a quem
tinham amputado os membros, e que na verdade ainda sentiam que existia lá esse órgão suprimido, o que não me deixei de pensar na
singularidade e coincidência de estar a dar um programa tão alusivo ao que eu estava a
sentir.
Passado um bocado, e perto do meio dia e meio, tocaram
à campainha. Eram os pais de Amanda, que tinham chegado a nossa casa.
- Querido podes abrir a porta?
- Sim, Amanda, eu vou lá. Respondi-lhe gritando da sala para que me pudesse
ouvir, mas até a
minha voz ia ficando com um fio de rouquidão, como se depois do braço aquele torpor se começasse a instalar ao meu tronco.
Respirei fundo e dirigi-me até à porta onde os meus sogros estavam a chegar.
- Olá João. Cumprimentaram-me.
- Bom dia. Respondi-lhes abrindo a porta. – Vieram cedo.
- É que a senhora tua sogra queria ajudar Amanda no almoço. Exclamou o Sr. Silveira com
uma expressão
profunda no rosto.
A Sr.a Silveira deu-me um beijo no rosto e dirigiu-se
para a cozinha. O seu marido ia para me cumprimentar, mas disse-lhe que estava
com um pequeno problema na mão e que não podia cumprimentá-lo com a direita mas apenas com a mão esquerda, ao que ele olhou
para mim de desdém, o
mesmo desdém que
tinha em relação à condução da
minha vida. É que eu
era um argumentista desempregado, e segundo a sua óptica, a vida de escritor não era vida para ninguém, o que ele considerava uma vida de quem não quer fazer nada, o que nos
tinha já dado
razões para
várias
discussões
sobre esse tema, e em que ele saia sempre a ganhar. Porem eram os pais da minha
esposa e eu não podia
contrariá-los a
esse respeito, pelo que o que sentiam por mim ficava bem evidenciado no seu
rosto.
- Mas magoaste na mão? Perguntou-me.
- Sim esta manha acordei com ela a doer-me um pouco.
Disse-lhe com um sorriso amarelo.
Por outro lado, a Sr.a Silveira, vinha com o seu casacão de peles, que mais parecia
um casaco de caça à raposa do que outra coisa, e que me entregou para eu arrumar. Na
cozinha ouvi Amanda a cumprimentar os pais.
Entretanto, a minha voz cada vez mais rouca, como se
os meus pulmões
estivessem a ser invadidos por uma nuvem de poeira, ecoava pelo corredor.
-Sr. Silveira aceita um whisky? Perguntei ao pai de
Amanda que tinha vindo ter comigo à sala.
- Sim rapaz, com duas pedras de gelo.
- Amanda temos gelo ai no frigorífico? Perguntei gritando da
sala em direcção à cozinha.
- Sim querido, já levo.
O pai de Amanda sentou-se ao meu lado no sofá da sala. Não é propriamente uma sala
grande. Tem uma televisão que
fica à frente do sofá,
dividida por um pequeno móvel
onde coloquei os copos de whisky.
Com a mão esquerda coloquei o líquido nos copos, e com a mesma mão fechei a garrafa que deixei
em cima dessa pequena mesa.
O meu sogro começou a falar.
- Quando era da tua idade bebia dois whiskys e era
como se fosse água.
Realçando a
sua valentia. – Mas
era quando tinha a tua idade. Sabes, o whisky faz bem ao coração porque desentope as artérias.
- Não me diga… Respondi com a voz cada vez
mais rouca.
- É verdade! Faz muito bem ao coração! Insistiu olhando nos meus
olhos.
Passado um pouco, e não sei se foi pelo whisky que bebi a minha perna
esquerda começou a
perder a vontade, e comecei a coxear um pouco quando nos dirigimos para a mesa
de almoço.
- Então já encontraste emprego.
Perguntou a minha sogra.
- Sra Silveira, já lhe disse que sou argumentista, mas neste momento as
coisas estão
complicadas para nós.
Infelizmente o cinema está pela
rua da amargura e andam a contratar poucos argumentistas.
- Pois sim. Respondeu-me a velha. Que raios que me
deixou mesmo irritado. A par disso, a minha perna esquerda tinha-me deixado de
responder, e coxeava um pouco. Amanda olhou para mim com uma expressão de ternura e perguntou.
- Está tudo bem querido?
- Sim Amanda, é só uma dor na perna.
Dirigimo-nos
então para
a mesa de almoço e
sentamo-nos. Sentia o meu corpo a cambalear de vazio, e a parte esquerda do
mesmo parecia estar também a
desfalecer, o que criava um reduto de sombra que parecia estar a invadir todo o
meu corpo.
Coloquei a comida no prato, e desistindo do braço direito comecei a comer com
uma voracidade aparente que até os pais de Amanda repararam. Era como uma necessidade
de preencher um qualquer vazio que se apoderara do meu corpo. Como se aquela
comida que eu levava à boca com a mão esquerda pegando no garfo, embora eu fosse destro,
me preenchesse aquele desaparecimento súbito dos órgãos.
- Assim a comer ainda te engasgas rapaz! Exclamou o
Sr. Silveira.
Mas a comida sabia-me tão bem que não liguei à provocação do velho tolo, que
insistentemente me provocava sem qualquer motivo.
- Passas-me a salada amor?
E quando ia a passar a salada a mesma sensação começou a
surgir na mão
esquerda, com o torpor usual a preencher cada um dos meus dedos, que procuravam
descanso, e que parecia inusual.
Entretanto passei a salada a Amanda, que me agradeceu.
O Sr. Silveira começou o diálogo.
- Sabes Amanda, penso que deviam mudar para uma casa
maior, quando tivessem filhos.
Disse com uma expressão assertiva no rosto.
Ia a responder e com a ausência da mão direita quase que derrubei
a garrafa de vinho tinto sobre a mesa.
- Sr. Silveira já falamos sobre isso.
Respondi, uma vez que o pai de Amanda já sabia a minha opinião em ter filhos e não era uma decisão a ter a curto prazo face ao
facto de estar sem emprego de momento.
- Mas têm que pensar sobre isso. Respondeu a Sr.a Silveira – Já não são propriamente novos e deve
estar nos vossos planos terem filhos.
Aquela resposta irritou-me e com a perna direita que
parecia estar a ficar também dormente, dei sem querer um pontapé na perna da mesa a que a fez
abanar um pouco.
- Estás bem querido? Perguntou a Amanda com aquela resposta
inusitada e com o pontapé imprevisto
sobre a mesa.
- Sim amor. É que já tivemos esta conversa com os teus pais uma dúzia de vezes.
Sr.a Silveira olhou para mim com uma expressão reprovadora.
- Passa-me a garrafa de vinho João.
Pediu o Sr. Silveira.
Passei com a mão esquerda, mas o torpor fê-la desviar-se e cair sobre o
colo do velho.
- Cuidado João. Foram as palavras de Amanda.
- Ai, desculpe Sr.Silveira. Respondi pelo acto de
descuido.
- Ora bolas… Gritou o velho olhando para mim pronto a praguejar.
Mas calou-se e Amanda foi buscar à cozinha um pano para limpar
o pai.
- Peço desculpa, é que as minhas mãos doem-me um pouco e parece que estão dormentes.
- Tenha cuidado para a próxima vez. Respondeu o velho.
No final do almoço mal podia levantar a mão esquerda, e a consciência
desse facto fez-me sentar no sofá da sala, de onde não me levantei nas próximas horas.
Contudo, ouvia atrás de mim, pois a mesa do almoço ficava atrás do sofá, a Amanda a dizer aos pais
para não ligar
de eu ter-me levantado tão cedo
da mesa, porque andava cheio de problemas por estar desempregado.
Aquilo fez-me ficar furioso, porque não estava desempregado, não era assim que me sentia,
mas sim um argumentista que andava sem trabalho, e que a qualquer momento podia
ser contratado.
A mão esquerda ainda respondia bem aos meus comandos, mas
por pouco tempo. O que me preocupava mais era a perna direita que havia deixado
de responder aos meus desejos.
- Mas querido vais arranjar emprego, eu sei que sim.
Ouvi a Amanda dizer na minha direcção, enquanto os pais olhavam de lado para mim, sentado
no sofá a ver
o programa da tarde na televisão. Embora eu estivesse ali sentado porque já tinha sérias dificuldades em
caminhar.
Quando os velhos se foram despedir de mim, levantei-me
com a força da
perna esquerda e cambaleando despedi-me deles desculpando-me.
- Não sei o que tenho hoje mas parece que o meu corpo
resolveu contrariar-me.
E ri-me alto. Já não sabia o que dizer.
O Sr. Silveira olhou de lado para mim e exclamou.
- Claro é o que dá estar desempregado. Ao que anui engolindo em seco
mais uma das suas provocações
mesquinhas.
Quando eles saíram fechei-me da casa de
banho, enquanto Amanda arrumava o resto das coisas da mesa de almoço.
- Está tudo bem querido?
Ouvia do lado de fora ela a perguntar.
- Sim, está tudo bem… Respondi-lhe.
Mas olhando o meu corpo no espelho, cambaleando com a
falta da perna direita todo o meu tronco parecia vazio e não sei como me aguentava em pé. Era de facto estranha
aquela sensação de adormecimento.
E a voz cada vez mais rouca que se incutia pelos meus pulmões.
Assim fiquei sentado sob a sanita, em cima do tampo,
enquanto o meu corpo se desarticulava, até que desapareceu na sua totalidade.
Foram os gritos da minha esposa que ouvi, quando ela
me encontrou de tronco caído na
casa de banho, sem qualquer força.
Depois apenas me lembro de os paramédicos entrarem em casa e me
levarem ao colo e depois numa maca para o hospital mais próximo.
Lá no hospital, a conclusão a que chegamos é que eu tinha contraído o vírus dos órgãos entorpecidos, que tinha surgido de um raro mosquito
de África e
que obrigava que o corpo estivesse de repouso durante alguns dias.
Mas ninguém conseguia explicar as alucinações de deixar de ver o corpo,
mas julga-se que isso se deve à minha doença bipolar, que pode devido ao
vírus,
ter levado a contrair uma psicose aguda que me levou a reviver aquilo.
Sei que é uma história estranha, e que roda o
absurdo mas depois de uns dias pude sair e regressei a casa. E foi assim que
tudo sucedeu.
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