Acordei
de manha com os raios de sol a surgirem pela vidraça da janela que se
encontrava ao lado da minha cama. Levantei-me da cama meio estremunhado e
sentei-me nela para acordar daquela letargia matutina. Olhando lá para fora
pelo meio dos estores conseguia ver os carros a afastarem-se e as folhas das
árvores a balançarem com a leve brisa.
Por
momentos, ao esfregar os olhos, reparei que a cama em frente à minha estava
vazia.
Talvez
Pessoa já estivesse acordado, mas naquele momento não havia lá nenhuma
escrivaninha nem indício de alguém que pudesse ter ocupado aquela cama na noite
passada. Por outro lado, não vi sombra de folhas brancas que com o vento fresco
da manha a soprar pela frestas da janela pudessem esvoaçar no caderno escrito
junto à cama.
Por
isso levantei-me devagar, reparando na tonalidade das paredes, no formato dos
móveis (um armário enorme encostado à parede e as duas camas em frente uma da
outra), na atmosfera envolvente e no pátio que circundava o edifício nesse
breve jardim.
Dirigi-me
à casa de banho para tomar banho e enquanto atravessava o corredor e os
diferentes dormitórios, era recebido com cumprimentos de bom dia pelos
restantes internados que ali moravam temporariamente como eu. Reparei que
alguns pareciam de facto perturbados, enquanto outros nada fazia prever porque
estariam ali, o que me levantava a questão de saúde mental, e o facto de muitas
vezes estar escondida na aparente sociedade, em que cada um vive imerso na sua
aparente normalidade.
A
casa de banho era grande. Tinha lá estado na noite passada, mas agora
compreendia melhor a sua dimensão. Era disponibilizada roupa lavada num
carrinho à sua saída, e havia uma série de chuveiros como num comum balneário.
A roupa por sua vez era mudada todos os dias e só aceitavam roupa da
instituição psiquiátrica. Havia também restrições ao uso de objectos cortantes,
com a justificação clara de poderem haver acidentes propositados (ou não) por
parte dos internados.
Mergulhando
o rosto na bacia de água quente, levantei o tronco limpando-me a uma toalha e
perguntei por Pessoa.
-
Alguêm aqui conhece o Pessoa?
E
sem resposta retomei.
-
Sim, Pessoa, um sujeito magro de rosto alongado de fato escuro e chapéu.
E
então responderam.
-
Pessoa? Não estou a ver rapaz. És novo aqui? Como te chamas?
E
outro.
-
Pessoa, não conheço nenhum Pessoa! Como te chamas rapaz?
Sem
obter qualquer resposta conclusiva apresentei-me:
-
Sou o Manuel. Disse. – Entrei ontem à noite e estou num quarto com um sujeito
alto de nome Pessoa. Não o conhecem? Voltei a perguntar.
-
Se conhecesse eu diria. Responderam-me. – Mas não me lembro de nenhum Pessoa
com essa descrição, mas se eu vir por aí, eu digo-te. Completou um dos
internados enquanto fazia a barba mesmo ao meu lado.
-
Rapaz, o único Pessoa desse quarto partiu à muito, muito tempo. Escutei outro
dos internados dizer.
E
então voltei à carga.
-
Partiu á muito tempo? Como assim?
-
O que queria dizer é que esteve cá internado um tal de Fernando Pessoa, mas foi
á muito tempo atrás. Concluiu.
Mergulhei
novamente a face na bacia de água quente e fiquei a olhar o meu reflexo no
espelho. A luz psicadélica da noite anterior já não ofuscava com tanta força
porque a casa de banho era inundada por uma luz exterior forte que cortava toda
essa tonalidade. Pensei que a situação de ontem à noite pudesse ser outro dos
meus devaneios, como sucedia no caso de Almada e de Sá. Sendo assim, ninguém
senão eu mesmo conheceria Pessoa, aquela estranha personagem que escrevia sem
parar numa escrivaninha junto à minha cama.
Após
tomar banho fui chamado para consulta com o psiquiatra.
-
Sabe porque esta aqui?
-
Sei sim doutor. Mas não sou eu que ouço vozes, elas é que falam comigo. E
completando perguntei.
-
Ontem à noite estava uma pessoa no meu quarto a escrever numa escrivaninha.
Sabe de quem se trata? Já perguntei a outros pacientes e ninguém o conhece. Por
outro lado, o enfermeiro disse que não estava lá ninguém. Mas eu sinto doutor.
Sinto nas palavras escritas pelo vento, naquele caderno amarrotado junto a essa
cama.
O
psiquiatra lança um profundo olhar sobre mim e diz que não está lá ninguém
naquele quarto. Que eu estou lá sozinho.
-
Você está doente rapaz e precisa de ajuda. Concluiu pensando que o meu estado
piorava de dia para dia.
O
psiquiatra era uma pessoa calma. O seu rosto sereno demonstrava experiência no
tratamento de casos semelhantes, em que havia alucinações por parte dos
pacientes. A sua face longa e esguia de barba comprida e expressão Freudiana,
adivinhava alguém que gostava de estudar a mente das outras pessoas, embora por
vezes isso fosse complicado, pois cada cabeça sua sentença. E o jeito do seu
olhar perspicaz também notava um certo aspecto Jungiano.
Olhando
para ele, incidindo os meus olhos persuasivos nos seus respondi:
-
Mas eu ia jurar que estava lá uma pessoa.
Porem,
o que eu tentava era arranjar justificações para o delírio. Uma vez que se
tornavam quase persistentes. Pois a doença começava a tomar conta da minha
mente e não se avizinhava um desfecho feliz para este caso, (embora mais tarde
soubesse de fonte fidedigna que tinha havido um paciente chamado Fernando
Pessoa que esteve internado naquela instituição psiquiátrica). O eterno poeta
como Almada lhe tinha chamado, na noite passada, quando me disse que iria ter a
companhia do poeta. E ele tinha razão.
-
Vou-lhe receitar uns comprimidos para reduzir essas alucinações. Disse o
doutor, escrevendo no papel a prescrição, e enquanto ele estava absorto na
receita médica, Almada surgiu ao meu lado, sentando-se na cadeira vazia ao lado
da minha.
-
Poeta dos poetas Bernardo. Disse. – Pessoa era o poeta dos poetas. Todos eles
com vidas miseráveis, sem nunca haverem reconhecido o seu génio. Perdidos,
mendigando nas ruas. Quantos penetraram no profundo da alma para se fazerem
voz. Nenhum como Pessoa, jamais. Quantos não codificaram a sua obra para não serem
censurados. Pois eu vivi isso tudo caro Bernardo. E pobre Sá, cujo génio era
maior do que o tamanho do mundo, e cujo suicídio foi para nós um relampejo de
dor. Completou, e de facto, Mário Sá Carneiro tinha sido um dos grandes vultos
da poesia do século XX e morrera tão jovem e com tanto talento.
-
A geração Orpheu caro Bernardo. E de repente confundi-me com Bernardo Soares,
um dos heterónimos de Fernando Pessoa. Quantas individualidades poderiam
existir em cada um de nós. Quantos heterónimos existiriam para além das
máscaras. Mesmo que a máscara fosse apenas transparência ilusória do mundo. E
num relampejo de dor assumi o meu papel, perante aquele cenário.
O
médico escreveu no papel os comprimidos e disse-me que iria ficar internado
algum tempo nesta instituição psiquiátrica até que as coisas ficassem mais
claras e a mente mais equilibrada. Era importante para mim que tivesse
acompanhamento médico, como assim o referiu, e que sempre que precisasse de
alguma coisa não evitasse em o consultar que estaria sempre disponível para
mim.
A
sua assertividade aprazou-me, e agradeci a sua disponibilidade.
Entretanto
Almada havia sumido. E como era seu costume, desaparecera no nevoeiro da
memória imerso nas suas palavras.
-
O amor verdadeiro não tem vista para o mar.
-
Doutor acredita no amor?
-
Claro meu jovem. Acredito no amor, mas acredito mais na realidade. Talvez sejam
conceitos incompatíveis, quando tomamos consciência que as coisas são
imperfeitas e o amor é um sentimento tão puro. Não nos damos conta que são os pequenos
pormenores que fazem toda a diferença.
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