Entrei em
coma à umas horas atrás. Não posso precisar bem como tudo aconteceu, mas julgo
que foi um acidente de viação que me atirou para esses cuidados. Embora o meu
corpo esteja adormecido, os meus sentidos permanecem intactos e sinto o que se
vai passando à minha volta. Recordo-me com vaga noção dos paramédicos que me
auxiliaram a sair do carro que capotou na auto-estrada. Lembro-me que pisei um
lençol de água e puxando pela embraiagem o carro estremeceu e capotou,
perdendo-se no infinito da estrada morta, mergulhando na água. Depois a
restante situação, que recordo como se a minha alma saísse do meu corpo, foi da
ambulância a levar-me para o hospital mais próximo, com a sirene que exauria o
seu som, às altas horas da madrugada. Era de noite. Uma noite de tempestade
quando tudo sucedeu. Daquelas noites, em que as estrelas afundam os seus sinais
pela terra, incidindo-se à luz pela beira dos passeios ausentes. E recordo-me
do teu olhar perdido junto a mim. O que te teria acontecido? Terias sobrevivido
meu amor? Mas encontrava-me em paz. Uma sensação de calma que povoava todas as
minhas células, como se a alma procurasse para além da estrada que é a vida, um
qualquer sinal da tua presença. O meu corpo deitado na maca do hospital parecia
retalhado com a fúria do embate, quando o carro o percorreu no tempo e os
nossos corpos se ergueram com essa fúria despejados junto aos vidros que se
partiram. Do lado do condutor ias tu. Imersa nos teus pensamentos. Momentos
antes, discutíamos o facto de aquela mulher se meter tanto nas nossas vidas.
Tratava-se da minha sogra. E recordo-me de tu me dizeres que ela só queria o
nosso bem. O que seria do nosso filho que ia na tua barriga. Será que teria
sobrevivido? Todas estas questões martelavam na minha cabeça, mas parecia bem,
em paz. Uma sensação de divino como se não tivesse acontecido nada de mais. De
repente ergo o meu vulto de luz na presença de uma personagem que me apareceu.
Era a morte. Olhei para ela com o vagar de uma expressão e ela ergueu a sua
foice devagar como se desligasse da vida e me quisesse levar com ela.
Incidiu-se sobre mim e pude ver o seu rosto, semelhante a uma caveira, com o
manto preto que lhe caia sobre o tronco. Perguntei-lhe:
- És a morte
e vens-me buscar?
Ela ergueu a
cabeça e pude ver os seus dentes podres, com o ar que expelia e circundava o ambiente com esse cheiro que me
fez respirar profundamente a tentar acordar daquele abrutecimento. A verdade é
que eu tinha bebido uns copos antes de tudo aquilo ter acontecido. Tínhamos ido
jantar a casa de uns amigos em Cascais. A noite estava amena e fora antes da
tempestade se ter abatido sobre a terra. Festejávamos o aniversário do Mário e
os copos foram-se sucedendo sem me ter apercebido. Bebemos, dançámos um pouco
abraçados, e destilamos conversa durante a noite toda até perto da uma da manhã.
Ao que decidimos regressar a casa perto da uma e meia, já a tempestade se havia
erguido e chovia a potes. Francisca, a mulher de Mário , perguntou-nos se
queríamos dormir lá em casa. Estava preocupada com o tempo e de nos irmos fazer
ao caminho. Respondi-lhe que não havia problema algum porque apanharíamos a
auto-estrada e num instante estaríamos em casa. Mas o mal havia sucedido quando
num lençol de água atirou as nossas vidas para uma convulsão de acontecimentos
que não conseguia ainda discernir.A morte olhou-me nos olhos e senti o seu bafo
quente incidir-se sobre mim. Naquele momento era só uma alma, enquanto o meu
corpo se debatia num coma induzido grave que parecia ir-me tirar a vida. Foi
quando ela se aproximou de mim e disse-me para a seguir. O meu vulto
desprendeu-se no ar e segui-a sentindo o seu manto esvoaçar junto a mim,
descobrindo todo o seu corpo de retalhos de um negro que a vestiam. O hospital
era enorme e pelos longos corredores perdia-se num redundar de camas e macas
que se estendiam por toda aquela ala da urgência. Via os passos apressados dos
enfermeiros que calcorreavam aqueles corredores a auxiliar quem lá estava. Mas
por onde nós passávamos parece que ninguém nos via. Ao fundo da porta entrava
outro paciente envolto em mil cuidados como se o seu caso fosse grave, e da
porta soprou um vento do exterior, que se abriu para a maca passar.
- Deixem
passar por favor. Gritava um enfermeiro.
- Por favor.
Continuava no seu labor empurrando a maca com o auxílio de mais dois.
- Sala da
cirurgia. Gritou o médico de serviço da urgência.
Continuámos
a caminhar e os nossos vultos, de mim e da morte, pareciam cruzar sem embaterem
nos corpos e corredores que se estendiam à nossa volta. Ao longe pude discernir
os pais de Amanda, a minha esposa e o olhar de pânico da sua mãe por aquilo ter
acontecido. E por mais que pudesse observar aquilo, a sensação de paz não
deixava antever o que poderia estar-se a passar.
- A Amanda?
Perguntei à morte que me olhava sempre de perto, com a sua foice presa em uma
das mãos enquanto a outra me dava indicações para a seguir. Caminhámos então
mais uns passos e entrámos num quarto que parecia ser o quarto de Amanda. Num
fosso de luz que se abateu sobre os meus olhos ela parecia estar bem. Entrámos
nesse quarto e vi a sua expressão tranquila enquanto dormia.
Sim, Amanda
tinha sobrevivido, mas o nosso filho? Infelizmente, o nosso filho não tinha
sobrevivido ao choque e tinha havido um aborto espontâneo. A minha alma tremeu
de dor e a sensação de paz pareceu desaparecer por momentos. A morte olhou
ainda com mais terror e apesar de Amanda estar bem, a criança havia morrido.
- O que foi
acontecer… Pensei por momentos. E ao longe ouvi o som de uma criança a dizer.
- Pai, eu estou
bem… Estou no céu. Ajuda a mãe.
Estremeci
com aquela revelação e senti o meu corpo vibrar, deitado na maca que acalentava
a minha vida. Então a morte pegou na minha mão e disse.
- Vem
comigo.
Não sabia onde ela me queria levar, mas
pressenti que era para um sítio de luz. Entretanto os pais de Amanda tinham
entrado na sala e abraçavam a filha com muitos cuidados.
- O Manuel?
Perguntou Amanda aos pais. O seu pai com lágrimas nos olhos, disse-lhe que
estava em coma e que o médico tinha dito que teria poucas hipóteses de
sobreviver. Os seus olhos inundaram-se de lágrimas e senti o seu eco vazio
ecoar pelo quarto em direcção ao corredor. Quis-lhe dizer que estava bem e que
em breve estaria com o nosso filho, quando a morte me disse.
- Ainda não
chegou a tua vez.
Pressenti
nessas palavras que tudo estaria bem. Para onde ela me quereria levar?
Percorremos
os passos em direcção ao exterior do hospital. Por momentos senti-me voar e vi
as luzes incidirem na nossa direcção, com focos fantasmagóricos. A morte
levou-me até uma planície verde. Parecia ser uma montanha e ao longe observei a
correr na minha direcção uma criança. O ambiente era de noite e não pude
claramente ver a sua silhueta, mas era
de certo uma criança. E gritava:
- Pai… pai…
Por momentos
os meus olhos encheram-se de lágrimas e o meu vulto amorfo encheu-se de dor.
Era o meu filho que havia perdido a vida há uns anos atrás por causa de uma
gripe e fora um foco de dor na nossa vida. Amanda e eu já tínhamos perdido um
filho há dois anos atrás. Neste momento deveria ter seis anos de idade. Tinha
sido uma morte por negligência médica, quando um surto de febre o havia atirado
para a cama. Os médicos enviaram-no para casa por pensarem que o caso não era
grave, mas tratava-se porém de um caso grave, e ele havia falecido por
insuficiência respiratória. E agora perdíamos o nosso bebé de quatro meses na
barriga de Amanda o que era também um caso de lágrimas e dor. Martin caminhou
para os meus braços. Abracei-o num abraço evasivo e perguntei.
- Martin? És
tu?
- Sou eu
pai. Olha como é bonita esta planície verde!
Olhei em
volta e disse:
- Sim, como
é bonita!
A morte
observava-nos calada na sua posição estática enquanto o seu manto esvoaçava ao
vento. O capuz escondia-lhe a cara e Martin pareceu não notar a sua presença.
- Meu
filhote! Meu filhote lindo. Exclamei a Martin.
Nos meus
abraços ele pareceu esquecer-se do mundo, e no abraço firme parecia querer
segurar-me de uma toda eternidade. Por momentos perguntou.
- A mãe?
Respondi-lhe
que a mãe estava bem, e que tinha muitas saudades dele, e que em breve
estaríamos todos juntos, como era há uns anos atrás.
- Olha pai,
um papagaio…
E Martin
segurava na mão um papagaio de papel que atirou ao ar fazendo-o esvoaçar. Um
papagaio que parecia voar imerso sob o vento crispado que soprava vindo do
longe, mas que adornava o ambiente. Então vi-o correr pelo monte com o seu
papagaio e a desaparecer ao longe, como se fosse um vulto de nada.
A morte
pegou-me no braço e com a outra mão disse para irmos. Teríamos que percorrer
essa distância em direcção a outro lado.
O negro do
céu começava a envolver-se com as luzes da madrugada. Sózinhos percorríamos
essa distância até ao outro lado. Voando por cima dos edifícios podíamos ver
toda a envolvência da cidade. Olhando o firmamento eram as estrelas que pouco a
pouco iam desaparecendo para dar lugar à aurora. O violeta da face da noite,
migrava em nossos sentidos querendo-me acordar daquela letargia. Com a sua mão,
a morte indicava-me para a acompanhar e dirigimo-nos em direcção ao mar. As
nossas sombras misturaram-se com as ondas serenas que envolviam o mar quebrando
essa passagem da maré calma, como se o seu ruído nos quisesse acordar.
- Aonde
vamos? Perguntei-lhe
Ela apenas indicava com o seu rosto olhando em
frente, cruzando o vento pardo que nos atingia a face de forma serena, e que
fazia esvoaçar o seu manto. Naquele momento éramos apenas dois vultos a voar na
madrugada, ao som da natureza e alegres por aquela pequena viagem. Mas estava
prestes a acabar, quando nos incidimos sobre uma casa.
Eu era
proprietário de uma fábrica quando tudo aconteceu. Digamos que não tratava
assim tão bem os meus funcionários. A nossa estratégia era de marketing
agressivo. Envoltos em campanhas, e por causa da crise, a austeridade na
empresa era uma prioridade. Por isso, o salário de alguns dos funcionários não
era o melhor. Recordo-me como no dia anterior tinha tratado Venâncio, um dos
funcionários dizendo-lhe que o despedia se o seu rendimento não melhorasse. Ele
era um dos meus vendedores, e o marketing agressivo implicava que todos eles,
da área das vendas, obtivessem os melhores resultados. Descemos então sob a
casa de Venâncio, uma casa velha, situada nas imediações ao fundo da cidade, na
área pobre. Pode ver o seu rosto deitado na cama. Parecia adormecido pois via-o
pela janela do seu quarto. Estávamos nós os dois do lado de fora a vê-lo dormir quando a morte me disse que
tínhamos de ir ao futuro para que eu pudesse ver os efeitos que teria na vida
daquelas pessoas. Talvez quisesse prevenir de alguma situação. Regressámos a
uma noite não tão longe daquela data, á hora de jantar. Venâncio estava a cear
com os seus dois filhos. A sua esposa por sinal havia falecido há uns anos
atrás com leucemia, e agora era ele sozinho que governava aquela casa. As
crianças sossegadas comiam um prato de sopa, enquanto o seu pai compenetrado,
as via comer. Olhava para elas com ar de carinho.
De repente o
telemóvel toca. Do outro lado uma voz ríspida de ira responde à chamada. Era eu
que lhe tinha telefonado, num dia em que o mês fechava, e as suas vendas não
eram nada por ali além.
- Venâncio,
amanhã temos de falar na fábrica. Estive a ver o seu mapa mensal e as suas
vendas ficaram muito abaixo dos objectivos. Gritava-lhe com a voz irada ao
telefone.
Ele apenas
gesticulava dizendo que tinha feito tudo por tudo para melhorar os seus
objectivos mas que a crise assim o dificultava a atingi-los.
Os filhos
serenos olhavam para o prato de sopa e para o pedaço de pão que metiam à boca e
não compreendiam o que se estava a passar. Mas a verdade é que aquele emprego
do seu pai era muito importante para a sobrevivência da família. Sem ele o seu
pai desempregado podia até perder a custódia dos filhos para a assistência
social. Pois já eram precárias as condições em que viviam. E eu que pensava que
o iria despedir nos próximos meses, sendo um alvo a abater na empresa devido ao
seu fraco desempenho.
- Amanhã
falamos melhor Venâncio, mas é importante que compreenda que se os objectivos
não forem atingidos não poderá permanecer cá a trabalhar. Continuava a dizer
com uma voz severa e de uma falta de respeito à sua condição humana.
Depois de
desligar, reparo como ele se senta novamente à mesa, com o semblante carregado.
As lágrimas escorriam-lhe sobre a face e os filhos mal davam conta disso. Deviam
ter entre quatro a seis anos de idade. Depois levanta-se da mesa e vai até à
sala. Abre uma garrafa de whisky e pegando num copo dá um trago. As crianças na
cozinha mal davam conta do que se estava a passar, mas Venâncio devido à
pressão na empresa abusava do álcool com efeitos que isso tinha para a sua
saúde. Encheu então outro copo e deu outro trago na garrafa. Depois, pegou nas
chaves e saiu deixando os seus filhos sozinhos em casa, despedindo-se de cada
um deles com um beijo na face.
- Onde vais pai?
Perguntaram-lhe as crianças.
- O pai já
volta, até lá portem-se bem… Respondeu Venâncio com um aperto na garganta
semelhante a um nó cego que parecia evadi-lo daquela dor.
Então saiu
de casa. Eu e a morte, no alto do nosso passeio acompanhamo-lo de perto,
enquanto ele se dirigia para o carro. A noite ficou de repente mais brilhante,
e as estrelas do céu pareciam avisar a esse prenúncio. Venâncio partiu com o
carro em direcção à estrada principal e os nossos vultos de névoa
acompanharam-no. Passados uns minutos o seu carro aproximou-se da ponte 25 de
Abril. Venâncio abre a porta do carro e salta cá para fora. Com as lágrimas no
rosto, parecia que líamos os seus pensamentos deprimentes, que ansiavam por
ajuda, mas que não havia nada a fazer. Sem emprego no futuro e com a perda á
uns anos de Ângela, sua mulher a dor no seu coração era quase insuportável.
Então descendo do carro e parando junto às imediações da ponte, virou-se para
uma das suas bermas. As lágrimas continuavam a escorrer-lhe da face. Quis acordá-lo
daqueles pensamentos que ouvia dentro da sua cabeça e que o tinham atirado para
ali.
- Ele vai
saltar… Foram as minhas palavras para a morte. Um ligeiro pânico instalou-se no
meu peito, pois Venâncio preparava-se para saltar daquela ponte e acabar com a sua
vida.
Pegou então
no seu telemóvel e parecia escrever uma mensagem de despedida.
“ Digam aos meus filhos que os amo
muito.” Foram as
suas palavras, quando deixou cair o telemóvel no chão e saltando, apenas um som
surdo se escutou percorrendo as labaredas da iniquidade, e o vento gélido que
cortava a noite. Ainda gritei para que não fizesse isso, mas foi tarde de mais.
A morte
olhou para mim com a sua expressão de horror e pareceu dizer-me que todas as
causas têm as suas consequências, e que ainda poderia inverter aquele futuro
tão negro na minha vida. Se respondesse porque era assim no emprego talvez
diria que fora por causa da minha vida também não ser um mar de rosas, mas nada
previa aquele acontecimento. Os objectivos agressivos da empresa tinham tirado
a vida a um homem bom, se ainda houvesse deles, e Venâncio era um deles. Não
porque assim o dizia, mas porque tratava os seus filhos com carinho. Mas aquele
desfecho não era de um homem bom. Como podia abandonar os seus filhos e
entregar-se á depressão. Mas não havia nada a fazer naquele momento ele tinha
mesmo acabado com a sua vida.
A morte
olhou para mim e regressámos ao presente, com a madrugada que espoliava o céu
com os seus raios de azul límpido que pude ver incidindo sobre o Tejo, onde
estávamos agora.
Todas as
causas têm as suas consequências. Era a lição que retirava daquele
acontecimento que ainda não tinha ocorrido. Subitamente fomos transportados
para outro local. Cruzamos os céus com a mesma fúria com que transpondo aquele
local, tínhamos visto Venâncio a saltar aquela ponte e regressámos ao presente.
A madrugada que se avistava cruzava o nosso olhar com a intensidade da luz do dia
que surgia. Parece que entrávamos numa floresta, pois podia ver a cor das
árvores que separavam a sua luz com os fios dourados que imergiam das copas.
Perguntei à morte o que estávamos ali a fazer. Ela olhando-me indicou com a sua
mão para que a seguisse. Ao fundo da floresta, com os raios de luz que surgiam
no chão e que furavam a pequena densidade da vegetação encontrava-se um velho
perdido sentado no chão. Parecia cego, pois os seus olhos escondiam-se à luz
imerso nos seus pensamentos.
- Quem és
tu? Perguntei-lhe olhando nos seus olhos negros e fechados, que parecia apenas
ver o que a sua alma assim absorvia.
- Eu sou tu…
Disse-me, levantando a face como que procurando a voz que havia falado com ele.
- Como assim,
és eu? Perguntei-lhe novamente.
O seu rosto
combalido parecia antever uma miragem e levantou-se. Os seus olhos procuraram
por mim e as suas mãos encontraram-me. Estava vestido com um vestido roto que
lhe descia sobre os ombros em direcção aos seus pés. A sua postura côncava
indicavam uma idade já bastante avançada e os fios de barba que lhe alargavam o
rosto pareciam crescer em profundidade na sua face.
- Ainda bem
que vieste. Tenho algo para te confidenciar.
Entregue à
sua batuta o velho homem agarrava-me as mãos com firmeza e com a força do
coração.
- Tens de te
entregar ao coração. Disse-me por fim. – Senão irás ficar sozinho.
Compreendi
por aquelas palavras que aquele cego simbolizava a cegueira com que conduzia a
minha vida, imerso no trabalho e pelos resultados atrozes que a empresa
necessitava, e por isso respondi-lhe.
- Mas eu não
consigo. Apenas penso no trabalho e Amanda de certo me irá abandonar um dia.
- Não te
abandonará como fizeram os teus pais quando eras pequeno.
E na verdade
eu era órfão de pai e de mãe. Eles tinham-me abandonado mal eu era criança para
um orfanato e a condução da minha vida tinha sido feita com alguns
constrangimentos a nível pessoal, passando por cima de quem se atravessasse no
meu caminho. E isso era óbvio pelo facto de levar uma pessoa a cometer
suícidio, como era o caso de Venâncio, algo que eu ainda podia modificar. A
minha vida tinha sido conduzida pela força do poder, e ter aquela fábrica era a
minha vida, mas não era o suficiente, porque o que interessa é quanto amas, e
não o poder que tinha na minha vida.
Ele pegou
com mais força as minhas mãos e disse-me olhando na face.
- No futuro
irás ter três filhos. Eles serão a tua força, mas todos eles te abandonarão. A
tua tirania irá fazer com que se afastem de ti e por isso terás de ser manso
pelo coração. Terás de mudar a tua atitude.
Acenei com a
cabeça dizendo que o compreendia, mas ainda estava imerso no facto da empresa
ser a minha vida. A morte olhava para nós serena. Não compreendia como aquela
morte podia ser tão serena, de olhos pregados no nosso diálogo e de manto
quieto à intempestividade que se levantava agora no ar, com a força do vento
que soprava ao fundo daquela floresta.
O velho
homem pegou nas minhas mãos e deixou-as cair no meu colo. Entregue à minha
postura.
- Três
filhos… Pensei, o que me alegrou o coração. A morte de dois deles como tinha
sucedido combalia-me de dor, mas ir ter três era de um profundo ardor de
alegria que suscitava na minha alma.
- Tentarei
ser mais compreensivo com a vida.
Disse ao
estranho homem, que parado parecia escutar o som dos pássaros ao longe. Com o
vento que se levantou, a morte disse-me para partirmos. Tínhamos falado com o
meu Eu do futuro e agora era tempo de partir. De partir em direcção ao hospital
onde o meu corpo estava preso aquele coma. Seria altura de despertar para a
vida. Todas aquelas indicações que me haviam sido dadas eram a prova de que uma
vida pode ser modificada para melhor, se a alma compreender as razões pelo que
muitas vezes conduzimos mal a nossa vida.
Agradeci à
vida por aquele manifesto, mas na verdade teria de agradecer aquela pequena
morte que me havia feito compreender todo aquele processo. Então levantamos voo
em direcção ao hospital, cruzando os céus. Pude ver o meu rosto novamente
reflectivo na água do mar enquanto voamos sobre a fonte cristalina dos oceanos
e senti os fios de laivo dourada embaterem sob a minha névoa enquanto cruzamos
o céu naquela madrugada que dava lugar a um novo dia.
No hospital
continuava tudo na mesma. Sob a minha cama e ao meu lado podia ver Amanda
segurando a minha mão à espera que eu acordasse. Estava pousada na minha
direcção sentada numa cadeira à minha beira e escutava com os seus ouvidos o
bater do meu coração incidindo-se na máquina ao seu lado.
- Amanda não
te queres deitar um pouco. Perguntou-lhe a mãe que entrara no quarto.
- Não mãe…
quero estar aqui quando Manuel acordar.
Á saída pude
ver os rostos constrangidos dos seus pais, que aguardavam que a filha saísse um
pouco cá para fora para descansar. Com pena pude sentir os seus semblantes
carregados por aquela tragédia que havia ocorrido.
A morte olhou
por uma última vez para mim e compreendi que só veria o seu rosto depois de
muitos anos. Por sinal, aquelas revelações tinham-me feito compreender que a
vida era afinal o outro lado da morte e que os seus conselhos induzidos, eram
uma forma de encontro com o melhor que existe em nós. Pude compreender que a
perda dos meus filhos tinha uma razão maior, mas que eles estavam bem. A esta
altura Martin corria com o seu papagaio por aquela planície verde, brincando
como se não houvesse amanhã, e Venâncio ainda com vida, esperaria um melhor
reconhecimento apesar das suas dificuldades nas vendas, mas com algum apoio
poderia modificar. Não era necessário que ele perdesse o emprego, já que a sua
vida já era repleta de tantas dificuldades. Quanto ao meu Eu no futuro, teria
de modificar a minha atitude em relação às pessoas que mais amava, que seria
Amanda e os filhos que iríamos ter para minha alegria, tal como me tinha
confidenciado.
Então o meu
corpo começou a tremer. Uma névoa estranha invadiu a minha alma, e um cortejo
de luz incidiu sobre os meus olhos.
Senti o
corpo de Amanda debruçado sobre mim e foi quando acordei, abrindo os olhos
suavemente. Estava naquele quarto de hospital e Amanda olhou para mim com um
olhar de ternura chamando os enfermeiros.
- Amanda
tive um sonho lindo! Foram as minhas palavras para ela.
Ela
abraçou-me enquanto os enfermeiros iam na minha direcção para que pudessem ver
o que se passava. Tinha acordado daquele coma.
FIM
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