Fui
internado num hospital psiquiátrico.
Dizem
que ouço vozes, mas eu digo-lhes que não. Elas é que falam comigo.
São
apenas manifesto da minha imaginação. Não fazem mal. Acompanham-me no meu
caminho e iludem um pouco o tempo que se manifesta nos ponteiros do relógio.
Como seria se por momentos eles parassem e nessa viagem permitissem encontrar
outro sentido para a vida?
São
como palavras de um livro, em que o autor revive o agora, pois não existe nada para
além do momento actual.
Levaram-me
para uma instituição psiquiátrica.
Recordo-me
da ambulância a atravessar a larga avenida e os sons da noite. Que se
confundiam com as luzes que reluziam em estranhas formas de traços irregulares,
que se projectam no céu, perpetuando a luz para lá do horizonte.
Esta
a delirar. Diziam.
E
as vozes que me acompanhavam nessa eterna solidão quebrando um pouco essa
incerteza. O medo do desconhecido.
Mas
com o efeito do anestésico, as luzes quebravam em tons cindindo no meu olhar,
como se este de súbito parasse para admirar esse bailado de cores. Formas
irregulares, perpetuas, neutras e brilhantes adivinhando um amanhecer majestoso
de um glorioso raio de sol, que as quebraria e com elas se detivesse na sua
magnificência.
Era
quase de madrugada.
E
também diziam.
Mas
que raio de luzes são essas que te sobejam ao teu olhar tal foco de paixão?
E
recordo essa paixão perdida, pela cor do universo, como se morresse em cada
pedaço meu, do teu coração.
Quanto
ódio poderia assim verter, quando o que o separava do amor era apenas uma linha
ténue. A mesma que nos separava de metade do mundo. E saudades essas de trovão.
Seria esse o amor?
Ou
partícula incerta de um corpo quebrado de desejo? Ou poesia insuficiente do teu
ensejo, maldita, palavra não escrita que apenas aos poucos poderia entender.
O
que seria o amor? Majestade de palavras perdidas, recuperadas no espaço sem
tempo. Do tempo, sem espaço. Do firmamento do céu, onde eras tu e eu que nos
abraçávamos. Nós nos braços um do outro. Antes da tua traição maldita, meu
amor. Antes que me tivesses apunhalado pelas costas com a desdita de um amor
falso e deserto, onde a palavra se assemelha ao vazio do teu coração.
Recordo
a ambulância a descer a avenida, e a entrar pela parte de trás da instituição
psiquiátrica em direcção à zona 24 A, onde ficaria internado.
E
as vozes diziam. Sim, terás companhia, não te deixaremos sozinho nessa tua
perpétua solidão.
As
vozes que eu não procuro. Elas é que falam comigo. Fazem-me companhia em
momentos em que me sinto mais em baixo, dando-me alento na vida. Surgem com a
aparição de amigos que me procuram para me consolar nos momentos mais
deprimentes, ou simplesmente para falarem comigo.
Por
isso fora-me diagnosticado esquizofrenia.
Poderia
haver outro nome para a doença. Podia ser apenas fantasia ou necessidade de
buscar reconforto, para fazer face à solidão.
Na
ala psiquiátrica, após a ambulância ter chegado, fui recebido por um enfermeiro
que me perguntou se necessitaria de alguma coisa. Era um sujeito magrinho de
óculos.
Respondi
que não necessitava de nada.
E
então ele conduziu-me ao quarto pois já era de madrugada.
Para
meu espanto uma das vozes que me faziam companhia surgiu do nada. O seu nome
era Almada. Um sujeito alto com ar atrevido e nariz abatatado que me disse:
-
O meu caro amigo irá ter a companhia do poeta! E recitou-me uma quadra que
parecia antever o reencontro com o poeta.
E
segurava nas mãos uma marioneta de madeira a quem chamava de Xico, com um fato
azul, cujos cordões ligavam-se num suporte que a permitiam fazer mexer.
Dançando recitava:
-O
amor verdadeiro não tem vista para o mar.
E
dançava com os cordelinhos com que Almada a manipulava, iluminando o espaço
escuro com o seu dourado que iluminava aquela zona.
O
enfermeiro que me recebeu à porta do estabelecimento perguntou-me que se
necessitasse de ir ao urinol, que estivesse à vontade.
Agradeci,
e meio perdido naquela alucinação, procurei clarear as ideias, e segui-o até ao
dormitório.
Pensei
comigo.
-“
Enfermeiro. Você não o vê? O Almada com a sua marioneta?”
E
parecendo ler o meu pensamento, Almada aproxima-se dele e sopra sobre o seu
rosto.
Ele
regela e refere-se a uma estranha e súbita corrente de ar. Perguntou-me se não
tinha de repente sentido um frio. Não o sentiu?
Sorrindo
disse-lhe que não.
Os
corredores eram largos e ao longe perdiam-se no escuro.
Apenas
uma ténue luz iluminava parte da passagem, enquanto a restante se perdia no
redundar da ala psiquiátrica.
De
facto necessitava de ir ao urinol.
-
Se me dá licença vou ao WC. Agradeci.
E
lá fui eu com a companhia do Almada.
A
casa de banho era grande, e a lâmpada meio fundida ofuscava intermitentemente
parecendo dar as boas vindas. Cintilava em tons psicadélicos reflectindo o meu
rosto na luz quebrada pela noite.
E
de novo Almada surgia perante mim com a marioneta dizendo.
-
O amor verdadeiro não tem vista para o mar.
E
onde se reflecteria o amor?
No
céu ou no mar?
Em
qual desses firmamentos gémeos seria incondicional?
E
a alegria de um gesto mínimo.
Espera
apertada junto ao coração infiel. Tu perdida de ti para te encontrares em mim.
Perdida de ti, cuja traição te havia levado para esse céu onde eram apenas as
luzes ténues dos candeeiros cintilando em cada passagem tua. Fantasma de letras
mortas. Ressuscitadas no deambular da ilusão.
E
a marionete de fato azul segurada pelos fios desafiava a gravidade dos
movimentos que o artista assim impingia. Dançando, dançando como se não
houvesse amanha. Hoje fosse o único dia. Mas não era.
Almada
partiu então num nevoeiro.
Espumando-se
no ar, tal névoa de inverno no raiar do dia.
Livre
como um pássaro ausente da sua culpa. Não havia culpa.
As
vozes eram reais. Considerava-as parte de mim. Um pedaço de amizade que era
suficiente.
Diria.
-Não,
eu não tenho alucinações. São projecções de amigos que me visitam. Projecções
do além.
Consenti
em o afirmar para incredulidade do enfermeiro que não entenderia e me julgaria
mais esquizofrénico do que já era.
O
enfermeiro disse-me que se já estava despachado que fossemos até ao dormitório
pois tinha de descansar.
Atendi
às suas ordens porque já era tarde.
Caminhei
então pelo corredor e senti os passos de Almada.
-
O amor verdadeiro não tem vista para o mar.
O
amor é bicho estranho, que se entranha na gente e depois nos corrói a alma, nos
absorve o pensamento, e nos faz lembrar do sofrimento da dependência de alguém
que quando nos falta nos emerge em angústia e desespero.
2.
Tínhamos
por fim chegado ao quarto onde eu iria dormir. A porta do dormitório rangeu, e
o quarto era composto por duas camas.
Junto
a uma delas estava uma pequena escrivaninha com um indivíduo debruçado sobre a
mesa de chapéu preto e fato apertado, de olhar perdido nas páginas de um livro,
como se cingisse a um desassossego só seu.
O
enfermeiro apontando para lá com a mão disse-me que a minha cama era aquela, e
que indo ficar sozinho neste quarto, se precisasse de alguma coisa que
dissesse.
-
Raios! Sozinho? Mas está ali um indivíduo debruçado sobre uma mesa.
Respondi-lhe apontando para o sujeito de chapéu na cabeça que escrevendo nem
tinha dado conta que já não estava sozinho e que estavam ali duas pessoas com
ele.
-
Você não vê? Perguntei. – Está ali uma pessoa numa escrivaninha a escrever!
Completei com ar interrogatório.
O
enfermeiro respondeu com tom irado que não estava ali ninguém, e que tratasse
de dormir que já eram quatro da manha e daqui a pouco amanhecia.
Mas
estava ali mesmo. Debruçado no silêncio, como se escutasse todos os sons para
deles decifrar um qualquer sinal. Absorto na sua escrita.
-
Ele escreve. Eu vejo-o com os meus olhos. Continuei, incrédulo por o enfermeiro
não o conseguir ver.
Respondeu-me
que não estava ali ninguém e que me deitasse que amanha tinha de acordar cedo.
Ou queria que ele fosse buscar um calmante. Perguntou com um ar preocupado por
ver a minha expressão inquieta.
-
Não, não é preciso. Às vezes a mente engana, e o que julgamos real são apenas
meros devaneios. Respondi para não o perturbar.
Disse-me
que tinha razão e que trata-se de dormir, e partiu deixando-me absorto naquela
fantasia.
3.
A
porta fechou-se, e ao fundo depois de se ter fechado ouvi uma voz:
-Raios
Bernardo. Sempre atrasado. Eu que precisava de si aqui. Às vezes mete-me raiva
homem.
Disse
a estranha personagem, virando o perfil do seu rosto na minha direcção com um
ar zangado.
Perguntei
surpreendido.
-
Bernardo?
-
Sim. Respondeu e continuando. – Trate de ir buscar mais papel para eu acabar
este capítulo.
E
de súbito fui transportado para outra realidade.
Senti-me
de repente um ajudante de guarda livros. O papel estava ao pé do arquivador, e
fui buscar algumas folhas. Porém ao pegar nelas desapareceram espumando-se e a
eterna noite regressou. E com ela o quarto escuro onde aquela personagem escrevia
e só assim pudesse libertar toda a sua ânsia.
As
fendas na parede para onde estava virado, desenhavam estranhos concêntricos de
linhas rachadas, e ele escrevia sem parar. Parecia deter uma necessidade de
exortar toda a sua inquietação naquelas páginas.
-
Então Bernardo, essas folhas. Inquiriu, não largando o papel que de imerso lhe
parecia transportar a outro tempo.
Ia
responder-lhe que o meu nome não era Bernardo quando me interrompeu.
-
Sabe que estou a escrever algo de muito importante, que ficará até ao fim do
tempo, imortalizado após a minha morte. Terminou, dizendo como realçando uma
coisa importante.
-
Mas quem é você? Perguntei indignado com tanto pedido.
-
Trate-me por Pessoa, Bernardo. Eu sei que não se recorda de mim mas eu vi-o
nascer. É uma inspiração minha e na reminiscência recrio-o como o meu
heterónimo Alberto Caeiro. Respondeu-me.
-
Recorda-se agora homem? Concluiu por fim, erguendo um pouco o seu corpo.
E
regressando ao seu pedido rangeu.
-
E essas folhas? Essas malditas folhas? Pediu, segurando um pedaço de papel que
parecia sobejar algo imperfeito e ele desejasse a perfeição, mas ela lhe
fugisse entre os dedos.
Fui
atravessado para a outra realidade, e pegando num conjunto de folhas
entreguei-as, pelo que me agradeceu.
Junto
à sua escrivaninha, estava a sua cama. A minha ficava no lado contrário,
encostada a janela. De repente, sentado em cima dela surgiu Sá, o eterno poeta,
e outra das figuras que me surgiam por vezes, e a quem eu tratava por vozes.
Estava pálido e de sentido suicida, de alma absorta, com se quisesse acordar de
um sonho.
Chegou-se
ao pé de mim com a vontade de gritar para me poder acordar daquele sonho.
-
Homem reage! Gritava. Um grito mudo que longe do tempo apenas nos desperta
pelas palavras escritas, ou pelos sonhos revisitados à noite quando as
pálpebras fecham para que o pássaro voe.
Então,
pegou numa folha dobrada no seu casaco e recitou.
De
repente, fomos transportados para um local de nevoeiro inócuo, e a sua alma
desprendeu-se tal como um pássaro que voaria para longe da sua inquietação,
perdendo-se no céu lá longe.
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