A
escuridão da alma pode ser tão perturbadora como a morte de uma criança. Ela
estava a morrer. Uma morte lenta que lhe retirava a vida a cada célula. A
impotência de seus pais que a viam deitada no leito à espera da morte convergia
para o desespero. Uma impotência de que sabiam qual a origem e lhes apertava o coração
com uma melancolia agras que parecia despertar neles o medo do desconhecido. O
seu rosto frágil, de olhos profundos de dor, cavados e negros que só com a
morfina parecia fazer desaparecer, indiciava uma alma combalida, mas certa
quanto ao desfecho nesta vida. Estranho destino que se cingia sobre os ombros
leves daquela criança, com o peso da idade terna de apenas seis anos de idade,
mas tão segura de si quanto ao que lhe iria acontecer no futuro. Com uma força
desmedida parecia acalentar o coração de seus pais com as palavras certas,
dizendo-lhes que tudo iria correr bem, e que no futuro no além um anjo a
pegaria ao colo e a levaria ao encontro de outras crianças. Assim, adormecida
profundamente, cingia-se em si de um pequeno peso de alma, que se intricava na
sua vida presa por um fio. Doutor, deveremos ter esperança quanto ao destino de
nossa filha? Perguntava o pai da criança ainda um pouco apático face aquela
situação em que tinha mergulhado a sua vida. O médico de olhos baixos em
direcção ao vazio, e sem lhe poupar qualquer esperança, dizia que era melhor
contar com o pior, pois a situação de Malena piorava a cada dia que passava. Nem
a quimioterapia parecia melhorar a sua situação. Assim, ligada a uma máquina
que lhe injectava pequenas doses de remédio, para lhe reduzir as dores, Malena
que morria com um cancro que se tinha expandido por todo o seu corpo, sonhava
que subia umas escadas, uma a uma, cujos degraus a levariam para um lugar que
lhe mais parecia com o céu, e onde ela poderia brincar com as outras crianças
que como ela, Deus havia levado para esse destino Os olhos de sua mãe
inundavam-se de lágrimas, mas chorava silenciosamente sem que a pequena se
apercebesse, pois era naquele momento apenas impotência que sentia por não
poder ajudar a sua filha. Os dias iam passando, e o quarto de hospital onde a
criança estava internada enchia-se de flores que as visitas iam trazendo. Eram
magnólias, lírios, uma orquídea branca que se cingiam às paredes do quarto de
um azul celeste. Apesar de tudo, essas bonitas plantas alegravam o quarto e
decoravam o ambiente. E ao respirar esse ar, com o cheiro que as flores
transmitiam, Malena parecia imergir num pequeno jardim onde a morte a viria
buscar no futuro. Olá, eu sou a morte, e venho-te buscar para poderes brincar
com os outros meninos, dizia-lhe uma voz que não a perturbava, mas que a
acalentava em relação a um futuro mais risonho que estaria à sua espera. Eu sou
a Malena, e nunca imaginei que a morte tivesse a forma de um anjo, daqueles que
se vê nos livros de desenhos, com largas asas púrpuras de um branco
transparente, tal asas de andorinha. Pois, mas eu sou uma morte especial,
aquela que recebe pequenas crianças como tu no seu leito. E Malena sonhava com
esse desfecho em que ao subir as escadas com a morte de mão dada, iria ser
recebida por muitos meninos que com ela festejariam as mais belas brincadeiras,
correndo por esse jardim, que mais se assemelhava ao seu quarto de hospital. E
nesses momentos, o seu pai perguntava com quem estava a falar a criança. Ela
que se remetia a si num diálogo surreal que parecia ser motivado pelas pequenas
doses do remédio que lhe era administrado. Com a morte, papá. Respondia a
menina. Ela disse-me que me virá buscar com ela para irmos brincar com os
outros meninos. E os olhos de seu pai enchiam-se de lágrimas, pois a morte não
pouparia a vida de sua filha nem o que ela tinha de melhor à presença de seus
pais. E se ele pudesse fazer um pacto com a mesma, talvez lhe dissesse para o
levar antes com ela, e poupar a vida de sua menina, que de tão frágil nem se
apercebia do seu desespero. Mas a morte não poupa ninguém. O destino já está
escrito nas estrelas e apenas o que pode acontecer é o prolongar de uma
situação que será inevitável. Mas se ele pudesse prolongar aquele estado,
talvez estivesse a ser egoísta pois as dores no corpo de Malena tornavam-se
insuportáveis, e o melhor mesmo é que a morte a levasse com ela para o outro
lado e lhe poupasse todo esse sofrimento.
Naquele
dia o vento soprava irresoluto sobre as cortinas do quarto de hospital e os
seus pais encontraram-na adormecida num sonho profundo. Os seus olhos negros
por detrás das pálpebras que se agitavam levemente faziam-na sonhar com o além,
onde os meninos brincavam com os seus papagaios de papel numa colina de um
monte verdejante, e sob um céu muito azul, calmo e sereno, onde ela se
encontraria para seu rejúbilo. O seu pai aproxima-se de Malena e segreda-lhe ao
ouvido para ela acordar, e os seus olhos abrem-se de mansinho. Já era dia, e
apesar do vento gélido que parecia querer entrar pelas frestas da janela do seu
quarto de hospital, ela acordou imersa desse sonho que sempre sonhava quando
dormia à noite. O papá e a mamã tem um segredo para te contar. Disse o pai à
criança. Olá papa, bom dia. Foram as suas palavras, uma vez que acordara
levemente e parecia querer despertar daquele sonho da última noite. Vais ter um
irmãozinho. Respondeu-lhe o pai. A mãe olhava para ela com olhos de ternura, e
agora que o seu fim estava próximo, Malena ia ter um irmão, pois a sua mãe
estava grávida. A criança alegrou-se com aquela revelação, e abraçou os pais
com grande furor. Ia ter um irmão, e estava radiosa com aquela constatação. Que
alegria imensa em ter um bebé com quem brincar. Então levantaram-na com cuidado
e sentaram-na num sofá que existia ao lado da sua cama que ficava encostada a
uma das paredes laterais do quarto. O papá comprou este livro de desenhos para
a menina. Tem uma bela história. Disse-lhe o pai. E que história é essa.
Conte-a papá, conte-a! Exclamou a menina que se havia sentado no sofá e que
agora desperta se alegrava com o seu novo livro de histórias. É sobre uma
menina que ia ter um irmãozinho. Começou o pai a contar a história. Certo dia,
veio a cegonha no céu e trouxe o bebé enrolado num xaile branco, semelhante a
uma manta de retalhos de um branco muito branco. E o bebé chorava fazendo: uá
uá! Continuou o pai a contar a história. A irmã que o veio receber dos braços
da cegonha, uma vez que os pais não estavam em casa, não sabia o que fazer.
Então, pegou num biberão e deu-lhe leitinho para ele beber. Mas ele continuava
a chorar. E então o que ela fez papá!? Perguntou a criança entusiasmada com a
história. Então a criança pegou-a ao colo e começou a embalá-lo e a cantar uma
música.
“
Era uma vez um bebé, muito fofinho, que dormia no seu cantinho.”
Cantava
a criança. E o bebé começou a ficar embalado e adormeceu num sono profundo, e
não mais chorou e ficou muito sossegado. Que bela história papá! Exclamou a
criança enquanto olhava para as figuras do livro. Sabes papá, estou cansada.
Disse a menina, e então o pai deitou-a novamente na cama. E os dias foram
passando.
No
dia em que Malena morreu, a sua mãe entrou em trabalho de parto no hospital.
Foi como se a sua alma migrasse para o corpo do recém-nascido. Não sei se isso
será possível, mas assim pensaram os seus pais, que vendo Malena partir, agora
tinham nas suas mãos um bebé frágil. E a partir daquele dia, assim contou a
história que as primeiras palavras que ele disse quando aprendeu a falar, foram
do nome da sua falecida irmã, Malena, para espanto dos seus pais.
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