sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Vem

Somos lábios humedecidos
que se tocam
consigo sentir nossos dedos
que se abraçam
e em toda essa verdade
quantos mistérios nos são desconhecidos
quando chamas por mim nos sonhos

Procurando a minha alma
junto ao teu coração
que me guarda perdido
sem saber a quem chamar

onde estás e por onde vens
tu de mistérios desvendados
que trotas a água do oceano 
de olhos vendados

e quando surge aquela manha
submersa em teu olhar
imersa na saudade
de apenas um respirar
somos apenas um e só
murmúrio de antiguidade

onde apenas o amor prevalece
dessa imensa verdade

Vem meu amor
e traz contigo as palavras vãs
vem e trás contigo o cordial de tua língua
que se enrosca em nossos corpos
submersos em água pura

vem e salva-me desta solidão
que longe de ti se exalta
como que quebrando as barreiras
de apenas um corpo despido
murmurante e perdido

vem e traz contigo as palavras vãs
que adoçam o meu sentido
as melodias certas
que me abraçam eu contigo
vem...

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Lágrima

Por cada lágrima vertida
de ti
cada sonho de nós
dois um dia
pelos dias que voam
por uma janela encantada
de cada palavra soletrada
ao meu ouvido
somos nós o amor
que se busca
a transmitir a paz

e nisso
em cada desejo teu
somos duas folhas
que se perdem no tempo
para se encontrarem
resolutas em comunhão

Se alegram os céus
para que nesse cuidado
se vertam as águas

Por ti amor
vou ao fundo do poço
reanimar a dor 
de não te ter aqui
quando todos os mandamentos
se tornam meras palavras
e nós,
nós percorremos esse mundo
ousando
o que o amor em nós nos nasce.

Para ti que me ouves nos sonhos

Na míriade noite dos nossos desejos
somos como dois pássaros
unidos no céu por um fio
que se cruza em teu olhar
em véu vazio

E nos faz suspirar
remetendo ao nosso pesar
contíguo

E quando a brisa
é mais densa que o sol
quando a lua se afasta
do seu normal reflexo
para cindir em sua lágrima
ao frágil destino de nós dois
somos um só coração
repleto de admiração 
cândido e selecto pelos dias

E assim perdidos em olhares
que cingem ao céu e vêm
somos dois pássaros
em nocturno destino
repletos de nossas emoções
Para eles cindimos nossos afectos
cruzando o mar e a terra
em sua desolação

Vêm meu Amor
que eu espero por ti

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Conto "O Espantalho de palha"



Era uma vez um espantalho feito de palha, cujo corpo envolvido em uma estaca de madeira com um fio lhe dá a consistência de um farrapo maleável, coberto por uma ganga velha onde as espigas se contorcem com a sua imobilidade.
Isso permite a sua identificação pelas criaturas que se aproximavam para tomar para si o que ele protegia, tal como os corvos negros que no cair da noite se aproximavam, enquanto o espantalho com a ajuda do vento, movimentava desenfreadamente o seu corpo de tábuas, numa tentativa de frustar as suas tentativas.
Porem devido à sua fragilidade, por vezes quebrava face ás intempéries do mundo, tal como sucedia em dias de chuva cerrada ou de forte vento.
Dessa sua pouca sorte, sina talvez, fado ou missão, apenas na sua cumplicidade com o que lhe seria destinado, ele se embutia em serenidade, quando pouco tecido já lhe cobria nesses temporais, para ser depois restituído como novas camadas de palha.
Os campos perdiam-se por essa planície, que se estendia por um caminho rústico que iria dar a uma zona onde se pode avistar todas a povoação e suas casas antigas.
Compreendendo que daquele esforço dos aldeões, do suor que lhe cai do rosto, no mesmo rosto onde as ruas revelam o seu sacrifício, era o seu ganha pão, o seu sustento para os dias, que eles avistavam com tanta tenacidade, face à impressibilidade da natureza.
A dança dos bichos no céu assemelhava-se à luta da vida, em que os corvos se aproximavam com as suas garras para se apoderarem dos alimentos, enquanto o espantalho dizia:
- Vão embora que isto não vos pertence!
Ao que eles em círculos sedentos de fome, se preparavam para um novo ataque. O espantalho com a força das tábuas que ele manuseava com estranho equilíbrio, lhes desferia um novo golpe que os deixava momentaneamente atordoados.
Pelo que tinha também o apoio dos outros pássaros que sob os seus ombros expulsavam os corvos que partiam no céu, perdendo-se no horizonte.
- Nunca te cansas espantalho, sempre na mesma posição, vivendo imerso nessa tragédia de afastar os malditos corvos, que tal como sombras se tentam apoderar das esperanças dos que nos seus cultivos, guardam com tanto amor o que lhes custou a alma em sofrimento e suor?
Diriam os pássaros ao aproximar-se, e cujo som ele compreendia por além de falar a linguagem dos homens, também falava a linguagem dos bichos.
- A lua também está sempre no mesmo local, tal como é de sua natureza iluminar a terra com o seu brilho no céu escuro, também a mim preso a este corpo de tábua velha, cabe-me proteger este pequeno espaço, tal como os que se conformam com o destino que o homem lhes deu.
Os pássaros que voavam no céu não compreendiam como podia o espantalho perder a oportunidade de conhecer um mundo  tão grande, para ali permanecer agarrado a uma tábua cravada no solo, como se o seu destino se tivesse que apaziguar a esse fatalismo.
Perguntavam-lhe se teria sonhos:
- Tens sonhos espantalho? Chilreavam rápido com movimentos repentinos partindo pelo céu com suas asas.
Perdido nessa pergunta, o espantalho olhava as noites que passavam e em que os campos por fim repousavam, e questionava-se se teria sonhos. Afinal não passa de um espantalho. Uma criação do homem feito de palha agarrada por uns cordéis a essas tábuas que mal suportavam a água das chuvas ou o vento em dias de temporal.
Mas talvez tivesse sonhos. Levantar-se um dia com a força do seu tronco e quebrar a tábua que o prendia ao solo, para partir e conhecer o mundo.
Afinal contavam-lhe histórias tão belas e magnificas que ele havia de querer conhecer essas terras de mares gloriosos, ou de montanhas que desaparecem imersas nas nuvens do céu.
E  um dia ao percorrer o caminho em direcção ao mar, aquela parte do mundo onde os peixes falam a linguagem da alma, ele pudesse mergulhar nas águas do conhecimento profundo e trazer dele a sabedoria sagrada, tal com a razão da sua existência.
E nessas noites em que a lua iluminava todo esse serão, em que a brisa no seu rosto lhe trazia a confirmação de que as colheitas haviam dado felicidade aos seus cultivadores, ele ficava a olhar a enorme planície que se perdia ao fundo num pequeno riacho, que desaparecia pelo caminho, com o brilho das nuvens no céu, que ao sabor do mundo se tornavam como uma imagem do divino que vinha naquele instante recorda-lo de para alem do seu corpo de espantalho coberto de palha, uma centelha divina ressurgia em si, dando-lhe um dom para alem da sua compreensão e que para alem da razoa e do intelecto, era como um caminho do coração.

Num desses dias em que imperturbável tentava sacudir os corvos negros que se aproximavam de si em investidas cada vez mais maldosas, cravando nas suas costas as garras afiadas e colocando sobre os seus ombros a árdua tarefa que o havia sido embutida como espantalho, surgiu por aquela estrada um coche com um serviçal e sua majestade, Del Rei, que vinham ver as terras concedidas para cultivo e cuja parte lhes era concedida como prémio.
Um belo coche desenhado sob figura de nobreza, revestido a ouro, que institui a mais elevada patente do castelo situado no cimo da colina e rodeado por muralhas onde residia o clero e a nobreza.
O cocheiro desceu do coche e movimentando os braços, agitando-os de forma trapalhona disse xo xo, para que os corvos partissem para longe da terra, ao que com o aviso eles partiram planando por aquelas terras ao longe, enquanto outros desceram pela outra colina em direcção ao riacho.
O Rei desceu no seu magnifico coche, enquanto os cavalos sossegaram, e estendendo o seu magestoso manto partiu estrada abaixo, pelo que iria observar os seus cultivos, e regressaria num instante, demorando pouco tempo e aproveitando para falar com alguns dos seus súbditos que ao longe trabalhavam nas terras, calejados de costas dobradas no chão e ao braseiro do sol que naquele dia zombava no céu.
O cocheiro iria permanecer por ali, ao que o espantalho o chamou dizendo: - “pssss…” tentando chamar a sua atenção. “ Ei, tu aí…” disse por fim.
- Ei lá ! Ei lá ! Um espantalho falante em terras de El Rei. – Disse o cocheiro com a sua voz meio apatetada e virando-se rápido na sua direcção. Aproximou-se para o olhar melhor e concluiu que se tratava de um espantalho pouco assustador, engraçado que não assustaria qualquer corvo.
- Põe-me o chapéu na cabeça por favor! Esse que os corvos atiraram ao chão. - Pediu o espantalho ao cocheiro.
O cocheiro aproximasse com cuidado para não estragar as terras del rei e pega no chapéu colocando-o por cima da sua cabeça, perguntando se ele não se cansava de passar ali os dias sob aquele tempo de sol abrasador, e afastando os corvos que insistiam a todo o instante para roubar a comida daquelas gentes.
O espantalho equilibrou-se e respondeu que era esse o seu oficio, o de proteger as colheitas.
O rosto do cocheiro ficou imóvel e depois soltou uma gargalhada:
- Pois bem, que sejas feliz assim! – Replicou por fim.
- E tu nunca  te cansas de conduzir del ´Rei no seu coche.
- Eu não, eu não! – Respondeu. – Faço também malabarismos, truques de circo, macacadas no trapézio. – E pôs-se a dançar, saltando e movimentando-se como um tonto.
- E não te cansas de ser pateta – Exclamou o espantalho com tom irónico.
- Não é maravilhoso! – Sorriu o cocheiro, pulando e dançando como se responde-se com mais veemência ao suposto insulto do espantalho sem lhe dar pouca importância.
- Como te chamas? Perguntou-lhe, que se rejubilava com o facto do espantalho estar ali pregado e ele ter toda a liberdade da vida para pular e dançar.
- O meu nome é Orlando! – Respondeu o cocheiro. – Primeiro quando nasci puseram-me o nome de Fernando até que um dia com a minha miopia crescente e com o meu ar de enfezado, a minha avó e as minhas tias, depois de ter sido abandonado pelos meus pais, que não tinham forma de sustentar um malandro, puseram-me o nome de Orlando. É uma forma de dizer: não és tanto tonto, nem tanto lindo.
Finalizou dando um pulo no ar de contentamento.
- E tu, e tu que nome te deram – perguntou ao espantalho.
- Não tenho nome nenhum – Respondeu.
- Claro que tens! Toda a gente tem um nome!
O Espantalho nunca tinha pensado nisso. Não tinha um nome, uma identificação que o pudesse afirmar como humano, sendo assim uma mistura de farrapos com um poucochinho de alma, que contudo lhe permitiam sonhar sonhos absurdos, como o de ver o mar e mergulhar na sua profunda sabedoria, renascendo para além do farrapo de homem que era, e que mesmo nessa centelha de espírito que nascia a cada dia dentro dele, se ia conhecendo melhor e a sua humanidade.
Olhou o horizonte para além do rosto do cocheiro, que se chamava Orlando mas cujo nome de nascença era Fernando, mas que depois da adopção pelas tias e avó e pelo seu ar enfezado de miúdo malandro e maldoso, lhe havia sido trocado. Com a crescente miopia arranjaram-lhe uns óculos quadrados pretos de hastes também pretas, que lhe permitiam ver melhor ao longe, mas que infelizmente ao perto lhe tornavam tudo turvo, não o curando mas piorando o seu estado degenerativo, cujos neurónios não abarcavam a sua infinitesimal inteligência mal medida, dos tombos que o destino lhe havia de pregar pelas suas macacadas no trapézio e malabarismos rascos que tanto alegravam os serões del´Rei, que por aqueles instantes descia aquela estrada arrastando o seu majestoso manto dourado!
- Coitado! Pensou o espantalho. – Pobre vida a do infeliz e eu a pensar que a minha á árdua.
Olhou o rosto de Orlando com compaixão e compreendeu que aquele estado de grande felicidade era apenas uma forma de esconder a sua imensa inferioridade de uma vida madrasta de abandono e rejeição.
- Vamos arranjar-te um nome… Já sei! – Disse o Orlando como se o seu rosto se iluminasse com uma ideia brilhante, que até o movimento das suas orelhas pareceram deslocar um pouco da haste dos seus óculos, para a ponta do seu nariz curvilíneo, olhando por cima das lentes, e de momento a fazer recordar ao espantalho um corvo que se aproximava pela frente para lhe desferir um golpe com as suas unhas no seu tecido de ganga, que tanto amor a ele tinha.
- Estapafúrdio – Exclamou. – Ide-vos chamar Estapafúrdio.  E sorriu com um sorriso aberto, abrindo as bochechas como quem se alegra do fundo da alma, com um acto tão caridoso que era a de doar o espantalho que de assustar não tinha nada, com um nome que o baptizasse e lhe desse um pouco de personalidade, alem do carácter que é ser espantalho.
Com a mesma reacção de há momentos, ter ficado assustado com a mudança de tom no rosto de Orlando, o espantalho ficou a pensar no nome com que o queria baptizar, e que embora não fosse muito a seu geito, sempre podia conferir um pouco de personalidade que o  fizesse ser também uma pessoa, e tal como as pessoas, poder sentir sentimentos, desconhecendo contudo que o seu coração de palha já incluía um pouco dessa miríade de estados, que ele ao olhar o cair da noite, se parecia ser abraçado pelo divino.
Por isso, talvez nem precisasse de nome, sendo espantalho na sua forma única, e na sua fragilidade composto por palha, e tendo como função afastar os malditos corvos, a sua própria identidade.
-Já sei! Emplastro. Replicou o Orlando coçando a cabeça, como se lhe houvesse custado a queima de dois ou três neurónios, caso o dele, irremediável, sendo uma situação insustentável a pouco prazo por estarem todos em extinção.
Emplastro parecia muito bem e quis contar as razões do nome, explicando que a sua escoljha não se remetia apenas ao aspecto gramatical, mas envolvia grandes análises de raciocínio, que na cabeça de Orlando, se remetiam a altas esferas de intelectualidade, de forma divina, como se o seu domínio celeste sob todos os elementos quando fazia malabarismo, fosse para além dos seus reflexos, um dom tão primata como a descoberta do fogo pelos nendertais, e por isso emplastro incluiria tal como o seu nome de Orlando, uma reminiscência a um estado tão tonto como de lindo.
Assim,  dotando o espantalho de personalidade não se sentiria tão sozinho no mundo.
Ia rematar o próximo nome quando El´Rei chamou.
- Orlando? Orlando? Pegue no meu manto, venha lá.
O dia tinha anoitecido, e o nevoeiro e as nuvens no céu, criavam um tom bruxuleante, pelo que as pingas evaporavam ainda aos poucos raios que para alem da planície surgiam na solidão, e o som dos pássaros difundisse nesse escuro, e os corvos sobrevoavam em bandos até suas casas.
- Quando El´Rei souber que existe um espantalho falante por estas bandas vai ficar espantado! Disse Orlando enquanto corria trapalhão em direcção ao coche para pegar no manto  que se estendia ao comprido.
O Espantalho apenas teve tempo de ouvir:
- Não sejas tonto Orlando.
Pensou que falassem em relação ao facto de um espantalho ter um dia personalidade e com isso sentimentos. Que um espantalho pudesse sentir como um ser humano e como tal não ser colocado ao frio, à chuva e à intempérie para desempenhar uma tarefa tão sacrificadora como a dos camponeses que trabalhavam arduamente, para que El Rei pudesse percorrer naquela estrada com o seu manto dourado, ostentando o seu poder e a sua riqueza.
Um espantalho não deixará de ser um espantalho, e Rei um Rei, e talvez na tentativa de o imergir com um pequeno ego que fosse, com aqueles nomes que lhe conferiam esse sinal na vida, ele pudesse ser alguém, e ter importância para alguém.
Mas nessa forma absurda de pensar, em que se questionava nos seus sonhos, o que dele poderia sonhar, Espantalho já se abraçava na sua própria companhia, que na solidão da noite lhe era suficiente para bastar a si próprio, como se ao despertar da centelha de vida, ao som das histórias que os pássaros contavam ele perde-se no absurdo que seria recuperar um pouco da consciência perdida na sabedoria do oceano profundo para o qual imergiria um dia o seu olhar, o mar cujos som das ondas se escutavam no seu coração sempre que soltasse o seu espírito pelo mundo, e a ele encontrasse quando a sua alma a si voltasse.
E a partir daquele dia, foi batizado de Estapafúrdio ou Emplastro.

Um só coração

Rogo para que nas horas vazias
sejam só um corpo
com dois corações
encobertos por um véu
que esconde os movimentos
imersos na paixão
e rogo 
que as palavras aos teus ouvidos
sejam murmúrios do além
em dois corpos 
de apenas um só coração

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Dois pontos

Será para sempre
a palavra amor
a raiz entre dois pontos
equidistantes
que um dia se irão unir
por um instante
E esse momento
valerá pela eternidade.
Enquanto isso não sucede
repetem-se as rimas
de uma canção
apertando forte o teu coração
junto ao meu
como se tudo isso fosse um mistério
sem definição.
Por isso não se conjuga
a palavra amor
apenas a sinto
no teu calor
de nossos corpos unidos
junto um ao outro
e só isso assim terá sentido viver

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Album: Para ti

*confidÊncias*

DO
Consigo perceber
             SOL
o teu olhar vazio

DO
tentando compreender
          SOL
o meu amor

GÉNERO DE REFRÃO:
MI         FÁ
que flor brotou de ti
DO           SOL
assim perto de mim
que flor brotou de ti
assim perto de mim


REPETE

Consigo perceber
o teu olhar cativo

tentando compreender
as minhas palavras


Consigo perceber
o teu olhar ausente

tentando compreender
o meu amor


Nas palavras que direi
são incompletas

para descrever o que eu
sinto por ti

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Tempo

Seguia os teus passos
quando caminhavas eu ia
perdido no deserto do teu amor
como se suplicasse por mais calor
do teu peito aberto à dor

E assim
resistíamos às intempéries
suscitávamos as caricias perdidas
suplicávamos pelas palavras concedidas
e era tudo tão pouco

Perdido no nevoeiro do teu olhar
olhando o céu que via passar
multiplicávamos os sonhos em dias
concedendo a nós o milagre do tempo
para sempre no nosso firmamento

Amar

Talvez o amor seja assim tão simples
como mergulhar nos teus olhos
e ver neles o profundo oceano
saudar a tua voz
e nela encontrar o meu destino
porque pelas palavras se morre
e por elas se respira 

Num só folego encontrar
o imenso sorriso de um olhar
penetrante e difuso
de quem quer apenas amar
com as mãos enlaçadas
em forma de coração

domingo, 19 de janeiro de 2014

Mistério

Procuro-te na orla do tempo, 
quando o sinal eram apenas rimas conjugadas, 
de memórias perdidas e destroçadas, 
tal como manhas de madrugada morna, 
em que os nossos corpos se consumiam, 
no desejo desses dias.

Foi tão pouco aquilo que deixas-te
que a memória permitiu deixar em nós
que se mitigou em sonhos vorazes
em pensamentos capazes da adversão
e tudo fugiu da minha mão
como sentidos ausentes.

Depois quando partis-te
a mim deixas-te a maré vazia de teu mar
o sol embrutecido a pousar
sob o meu plano nesta terra.

Consumindo em cada gesto
devorando cada manifesto da tua lingua
em cada palavra que me trazias
e tu assim ausente do mistério.

O verbo

Silabas...

conjugo-as em palavras 
perdidas no tempo

que no espaço se dão
em teu sorriso

de que teus olhos aplaudem
serenos

ao convite aos corpos
entrelaçados

que se debatem
tal como astros fustigados

no seio de teu peito ardente

voando para o firmamento
explodindo em raios inusitados
até que combalidos e ausentes
partem em mundos consumados

Sílabas

Articulo cada silaba 
no perene céu vasto e luxuoso

cada uma a soletrar no vazio 
da imensidão que se perde 
em cada corpo


e cada sílaba
ao sinal de Deus
ergue-se no céu 
como uma estrela deslumbrada

que convida o riso dos pássaros
que se levantam
nas madrugadas surdas

dizendo que vem de lá o teu sorriso
e como me encanta
tal e qual uma subtil dança
e a bonanza

Palavras

Procuro nos teus olhos
o desejo escondido
de um instante

que fere
como a palavra proferida,

e no momento
em que nossos lábios
se encontram...

é como se o universo
existisse

Procuro nos teus olhos
o desejo escondido
de um instante

promontório da lua
e do mar ausente

Como a palavra perdida
de uma palavra
ausente...

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Estranho caso dos membros desaparecidos - Conto




Estranho caso dos membros desaparecidos - Conto



Não posso precisar quando tudo começou. Lembro-me que a pouco e pouco fui perdendo a consciência dos meus actos, e imiscuído desses cuidados, a consciência sobre o meu corpo se foi deteriorando. Primeiro começou pela minha mão, que a pouco e pouco foi perdendo a sua força. Depois os meus membros inferiores, as minhas pernas e no final o meu tronco e cabeça. Mas para recapitular e vos contar o que se passou tento recordar as memórias que fui perdendo nesse episódio.
Era uma manha de chuva. Já no céu as nuvens rebentavam sob a terra e chovia de forma torrencial. Os pingos à semelhança de pequenas gotas desciam sob a janela do  quarto, estando eu deitado na cama. Conseguia vê-los a descer sob o alpendre, e mergulhado no sono ainda, deixei-me estar a ver esse triste bailado. Depois, levantei-me e vesti o casaco de linha grossa para me proteger da intempérie. Um griso frio apoderou-se da minha alma e regelei sentando-me na cama.
O primeiro torpor que senti foi na minha mão direita. Os dedos pareciam não se mover, e tentei sacudi-la para que ganhasse vida, mas nada. Nem o duche quente pareceu acordar os dedos daquele torpor que a pouco e pouco se apoderava do meu corpo. Depois do duche, vesti a roupa, e fui até à cozinha. Uma cozinha de tons lilases, com uma mesa ao meio, e duas cadeiras na qual me sentei para beber um copo de leite. Olhei para o relógio e seriam umas oito da manha. A minha mulher ainda estava deitada, mas ouvindo-me dirigiu-se a cozinha ainda no seu robe castanho. Os seus cabelos desciam-lhe sobre o tronco, e os  olhos azuis, como duas pérolas num oceano de luz, desejaram-me um bom dia.
- Olá querido. Disse-me com uma ternura na voz.
A noite passada tinha sido de uma entrega de amor aos nossos corpos, com gemidos de prazer que clarearam os meus sentidos que agora pareciam estar empobrecidos por aquela súbita falta de contacto que sentia na minha mão.
- Bom dia. Respondi-lhe, ao que ela se aproximou de mim dando-me um beijo na boca.
-     Sabes Amanda, esta manhã sinto-me esquisito. E de facto sentia-me estranho, um torpor como já vos contei na minha mão direita, e a dificuldade em tentar mover os dedos.
- Como assim? Questionou olhando para mim.
- A minha mão Sinto um entorpecimento na minha mão direita.
Ela olhou para mim, pegou-me na mão e fez-lhe uma breve massagem. Senti os seus dedos nos meus, mas aquela curiosa sensação não parou de desaparecer. Era como se a minha mão tivesse perdido a vontade própria e desaparecesse no espaço. Como se faltasse ali um membro, e este estivesse decapitado.
Dei-lhe outro beijo na cara e exclamei.
- Não há-de ser nada.
 Mas de facto a  sensação de ausência não desaparecera. Nem com a sua breve massagem os dedos pareciam ganhar outra vida, e a mão a pouco e pouco ia perdendo a sua elasticidade.
Até o copo de leite tive que levantar com a mão esquerda, porque a direita já não respondia aos meus comandos.
- Querido queres que vá contigo ao hospital?  Perguntou-me Amanda.
- Julgo não ser necessário. Respondi-lhe tentando mexer a mão.
Ela sentou-se ao meu colo e disse-me ao ouvido.
- Porque não vens mais um pouco para a cama. Pode ser que te passe. Faço-te uma massagem especial. Senti a sua língua na minha orelha, e abraçando-a respondi que necessitava de ir lá fora ao supermercado e que mais tarde quando regressasse ela faria a tal massagem.
Mas a verdade é que não estava com vontade para a massagem. Os sentidos da minha mão pareciam desaparecer, e apenas um breve relevo sentido era o pouco que eu conseguia discernir.
Olhei pela janela da cozinha e continuava a chover. Uma chuva morna que aclarava o ambiente, pelo que peguei no meu casaco e despedindo-me de Amanda dirigi-me até lá fora.
Desci as escadas do prédio, passo a passo devagar, enquanto conseguia conduzir pela mão esquerda no corrimão da escada. Na rua, a chuva caia em abundância e eu para me proteger, acedi ao guarda-chuva enquanto me dirigi até ao carro.
No carro tive muita dificuldade em conduzir. A mão direita que controlava as mudanças, custava a responder ao meu comando. Fui devagar, desacelerando com a embraiagem, e tentando não ter nenhum acidente, pois seria chato que naquelas condições tivesse que me preocupar agora com um arranjo do carro.
Conduzi até ao supermercado local. Estacionei o carro à  porta, e ao sair o enorme letreiro dizia o nome do supermercado, bem encostado a zona onde havia estacionado.
Quando ia a entrar, dirigiu-se até mim um dos meus vizinhos que me perguntou.
- Por aqui tão cedo João?
- Olá Henrique Respondi-lhe com um sorriso na cara, bem que ainda forçado pela situação em que estava envolvido.
- Parece que ontem houve um dilúvio sobre a cidade. Disse-me Henrique, que entretanto estava a sair com as compras mas na área coberta ainda pelo supermercado, onde não chovia, embora a chuva já cessasse de cair com tanta violência e o sol parecia querer mostrar a sua face.
- É verdade. Ontem choveu a rodes. Como está a sua esposa? Perguntei.
- Está óptima, obrigado. Ontem regressamos da terra.
- Muito bem. Respondi.
- E a Amanda?
- Amanda ficou em casa a tratar das coisas para o almoço. Vem cá a minha sogra almoçar com o meu sogro. O que era uma prática habitual naqueles dias de Domingo.
- Bom almoço João.
Despedi-me de Henrique e entrei no supermercado.
A sensação de ausência da minha mão começava a ganhar uma força própria, e agora sentia essa sensação a alargar-se ao restante braço, com um torpor que parecia aumentar à medida que o tempo passava.
Dirigi-me à zona dos congelados. Enfiei a mão dentro da arca frigorífica e foi isso que me acalmou um pouco. Reparei naquele momento na quantidade de coisas que o supermercado vendia em termos de congelados. Nunca tinha visto nada assim. Era marisco para preparar com arroz, ou era solhas de peixe, carapaus e um número quase infindo de coisas para preparar para a merenda.
Quando retirei a mão da arca frigorífica, esta tinha desaparecido. Fiquei atónito, pois não sentia qualquer sensação nela. Ou era um truque de óptica ou de facto a mão desaparecera mesmo. Tentei abanar o braço, mas parecia estar a ficar embrutecido.
Chamei a funcionária da peixaria e dirigindo-me a ela a cambalear perguntei com ar intrigado e constrangido:
- A senhora consegue ver a minha mão.
A mulher olhou nos meus olhos, e fez uma expressão horrorizada quando me disse:
- Que mão é que o senhor está a falar. Vejo duas mãos.
Acenei-lhe com a mão esquerda.
- Esta você vê e eu também, mas esta a direita?
A mulher olhou intrigada para mim a pensar que eu era louco e disse que sim que via a minha mão direita, não deixando transparecer a sua expressão admirada pela pergunta que lhe fazia.
Sai do supermercado a correr e dirigi-me para os lavabos que ficavam mesmo ao lado.
Lá dentro, olhei ao espelho e de facto via a minha mão reflectida, mas quando olhava directamente para ela, esta já não estava lá.
Que estranho caso se havia apoderado de mim. A minha mão reflectia-se no espelho, mas uma sensação de entorpecimento havia-se instalado em mim.
- Devo estar louco. Pensei comigo mesmo.
Então acalmei-me, passando o meu rosto pelo pequeno fio de água da torneira e chapinhando com a mão esquerda, e relaxei um pouco.
- Isto deve ser da merda dos comprimidos que o psiquiatra me receitou. Pensei para mim mesmo. Por isso vais-te acalmar e vais novamente dirigir-te para o supermercado para fazer as compras que estão a faltar para o almoço.
Acalmei, e olhando para a mão que não via, dirigi-me novamente para o supermercado para fazer as restantes compras.
Peguei no carrinho das compras com a mão esquerda uma vez que a mão direita não existia e não respondia aos meus comandos e dirigi-me para a zona da fruta.
Tinha de comprar laranjas e maçãs que faltavam lá em casa e que tanto a minha sogra gostava, mas não conseguia deixar de pensar na mão ausente.
E então ao dirigir-me para a zona da frutaria esbarrei contra a montra das bananas fazendo-as cair ao chão, e isto porque não conseguia ver a mão direita. Ela atrapalhava todos os movimentos que fazia, e por mais misterioso que seria o caso, era uma sensação de ausência que se via apoderada de mim, e dos meus sentidos.
Consegui contudo comprar tudo o que pretendia, e mesmo com aquela sensação da mão que se estendia a todo o meu corpo, começando agora pelo restante braço, acabei por depositar as compras junto à caixa de pagamento.
- São 49 euros.
Pedi à funcionária que me ajudasse a colocar as compras nos sacos, pelo que ela vendo o meu ar constrangido e preocupado acedeu ao meu pedido.
Colocamos as compras nos sacos, e entretanto, peguei-os com a mão esquerda depois de pagar com cartão de crédito.
- A mulher deve pensar que sou louco, só a utilizar a mão esquerda para fazer as coisas, pensei.
Mas ela lá voltou à sua lide, e não deve ter pensado mais no assunto, porque já estava a atender outro cliente. Com a mão esquerda peguei os sacos e dirigi-me para o carro. Preocupava-me como seria possível conduzir só com uma mão, uma vez que a direita desaparecera e o braço parecia ir pelo mesmo caminho. Apenas se via a manga da camisola a tapar todo aquele embaraço de órgãos que visivelmente para mim haviam desaparecido.
Lá fora acabara de chover, e o sol no céu começava a surgir do encoberto das nuvens no horizonte.
Coloquei as compras na mala do carro, e entrei dirigindo com a mão esquerda que colocava as mudanças com algum cuidado, indo a dirigir com alguma prudência.
Recordo-me de chegar a casa por volta das onze da manhã, e ter aberto a mala do carro com a mesma mão que pegava nas compras, mas era agora o braço que me preocupava. Deixara de sentir o braço direito, e aquela estranha sensação parecia estar a invadir o meu restante corpo. Para já era apenas o braço que deixara de sentir, e por isso, entrei no prédio com as compras dirigindo-me para casa.
Subi as escadas com algum esforço, e pousando as coisas no chão, abri a fechadura.
Amanda estava na casa de banho a tomar banho, pelo que deixei a estar descansada e dirigi-me para a cozinha para pousar os sacos.
O reflexo dos azulejos sobre os meus olhos não mitigavam aquela sensação estranha de ficar em poucas horas sem a minha mão direita e um torpor leve se estar a apoderar agora do restante braço.
Depois de Amanda sair da casa de banho e ainda com a nuvem de água quente que embaciava o espelho, despi a camisola e olhei para o braço que havia também desaparecido. Em poucas horas tinha desaparecido a minha mão e o braço agora também ia pelo mesmo caminho. O que eu não faria para parar aquela situação.
Mas de facto havia pouco a fazer. Era como que um constrangimento que invadia todo o meu corpo e me deixava perplexo.
- Querido já chegaste? Perguntou Amanda.
Do lado de fora da casa de banho, e tentando esconder-lhe a situação exclamei.
- Sim Amanda. Estou na casa de banho e já saio.
Entretanto apressei-me a vestir a roupa antes que Amanda me perguntasse o que se passava.
 O que lhe iria dizer?, pensei: - A minha mão direita desapareceu e o meu braço também está a desaparecer. Seria de loucos, e ela ficaria irritada comigo a pensar que teria alguma coisa a ver com o facto dos pais dela virem almoçar a nossa casa.
Por isso, vesti-me rapidamente e sai da casa de banho dirigindo-me a cozinha.
Amanda estava no quarto a vestir-se e depois saiu na minha direcção dando-me um beijo no rosto.
- Já estas melhor da mão?
- Nem por isso. Respondi-lhe tentando infelizmente movê-la mas sem qualquer resposta. Mas há-de passar.
- Vou preparar o almoço, queres-me ajudar? Perguntou-me.
- Sim amor.
Amanda começou a fazer uma sopa, e aqueles vapores começaram a deixar-me nauseado, com o cheiro que exalava.
- Vou fazer uma sopa e enquanto isso, podes cortar as batatas?
Respondi-lhe que com a mão assim não conseguia. Ela então aproximou-se de mim e pegando na mão direita que eu via ela levantar, fez-me outra pequena massagem para que os meus dedos deixassem de ficar embrutecidos. Mas o que eu via era uma manga da camisola e a falta da mão direita, que ela agarrava com tamanho carinho.
- Estás chateado pelos meus pais virem cá almoçar? Questionou-me.
- Não é isso amor é a minha mão que me dói bastante.
Então ela perguntou se queria que lhe passasse uma pomada para as dores, ao que acedi que sim, que podia passar, pelo que foi buscar o creme à casa de banho. Porem, não senti nada, e apenas via a manga do casaco com a mão ausente a ser massajada pelas mãos de Amanda, que com tanto carinho lhe passava o creme por cima.
Depois, pediu-me que fosse até à sala e que me sentasse a ver um pouco de televisão enquanto preparava o almoço, e que depois me chamaria se fosse preciso alguma coisa.
Lembro-me com a vaga recordação de estar a dar um documentário sobre pessoas a quem tinham amputado os membros, e que na verdade ainda sentiam que existia lá esse órgão suprimido, o que não me deixei de pensar na singularidade e coincidência de estar a dar um programa tão alusivo ao que eu estava a sentir.
Passado um bocado, e perto do meio dia e meio, tocaram à campainha. Eram os pais de Amanda, que tinham chegado a nossa casa.
- Querido podes abrir a porta?
- Sim, Amanda, eu vou lá. Respondi-lhe gritando da sala para que me pudesse ouvir, mas até a minha voz ia ficando com um fio de rouquidão, como se depois do braço aquele torpor se começasse a instalar ao meu tronco.
Respirei fundo e dirigi-me até à porta onde os meus sogros estavam a chegar.
- Olá João. Cumprimentaram-me.
- Bom dia. Respondi-lhes abrindo a porta. Vieram cedo.
- É que a senhora tua sogra queria ajudar Amanda no almoço. Exclamou o Sr. Silveira com uma expressão profunda no rosto.
A Sr.a Silveira deu-me um beijo no rosto e dirigiu-se para a cozinha. O seu marido ia para me cumprimentar, mas disse-lhe que estava com um pequeno problema na mão e que não podia cumprimentá-lo com a direita mas apenas com a mão esquerda, ao que ele olhou para mim de desdém, o mesmo desdém que tinha em relação à condução da minha vida. É que eu era um argumentista desempregado, e segundo a sua óptica, a vida de escritor não era vida para ninguém, o que ele considerava uma vida de quem não quer fazer nada, o que nos tinha já dado razões para várias discussões sobre esse tema, e em que ele saia sempre a ganhar. Porem eram os pais da minha esposa e eu não podia contrariá-los a esse respeito, pelo que o que sentiam por mim ficava bem evidenciado no seu rosto.
- Mas magoaste na mão? Perguntou-me.
- Sim esta manha acordei com ela a doer-me um pouco. Disse-lhe com um sorriso amarelo.
Por outro lado, a Sr.a Silveira, vinha com o seu casacão de peles, que mais parecia um casaco de caça à raposa do que outra coisa, e que me entregou para eu arrumar. Na cozinha ouvi Amanda a cumprimentar os pais.
Entretanto, a minha voz cada vez mais rouca, como se os meus pulmões estivessem a ser invadidos por uma nuvem de poeira, ecoava pelo corredor.
-Sr. Silveira aceita um whisky? Perguntei ao pai de Amanda que tinha vindo ter comigo à sala.
- Sim rapaz, com duas pedras de gelo.
- Amanda temos gelo ai no frigorífico? Perguntei gritando da sala em direcção à cozinha.
- Sim querido, já levo.
O pai de Amanda sentou-se ao meu lado no sofá da sala. Não é propriamente uma sala grande. Tem uma televisão que fica à frente do sofá, dividida por um pequeno móvel onde coloquei os copos de whisky.
Com a mão esquerda coloquei o líquido nos copos, e com a mesma mão fechei a garrafa que deixei em cima dessa pequena mesa.
O meu sogro começou a falar.
- Quando era da tua idade bebia dois whiskys e era como se fosse água. Realçando a sua valentia. Mas era quando tinha a tua idade. Sabes, o whisky faz bem ao coração porque desentope as artérias.
- Não me diga Respondi com a voz cada vez mais rouca.
- É verdade! Faz muito bem ao coração! Insistiu olhando nos meus olhos.
Passado um pouco, e não sei se foi pelo whisky que bebi a minha perna esquerda começou a perder a vontade, e comecei a coxear um pouco quando nos dirigimos para a mesa de almoço.
- Então já encontraste emprego. Perguntou a minha sogra.
- Sra Silveira, já lhe disse que sou argumentista, mas neste momento as coisas estão complicadas para nós. Infelizmente o cinema está pela rua da amargura e andam a contratar poucos argumentistas.
- Pois sim. Respondeu-me a velha. Que raios que me deixou mesmo irritado. A par disso, a minha perna esquerda tinha-me deixado de responder, e coxeava um pouco. Amanda olhou para mim com uma expressão de ternura e perguntou.
- Está tudo bem querido?
- Sim Amanda, é só uma dor na perna.
Dirigimo-nos então para a mesa de almoço e sentamo-nos. Sentia o meu corpo a cambalear de vazio, e a parte esquerda do mesmo parecia estar também a desfalecer, o que criava um reduto de sombra que parecia estar a invadir todo o meu corpo.
Coloquei a comida no prato, e desistindo do braço direito comecei a comer com uma voracidade aparente que até os pais de Amanda repararam. Era como uma necessidade de preencher um qualquer vazio que se apoderara do meu corpo. Como se aquela comida que eu levava à boca com a mão esquerda pegando no garfo, embora eu fosse destro, me preenchesse aquele desaparecimento súbito dos órgãos.
- Assim a comer ainda te engasgas rapaz! Exclamou o Sr. Silveira.
Mas a comida sabia-me tão bem que não liguei à provocação do velho tolo, que insistentemente me provocava sem qualquer motivo.
- Passas-me a salada amor?
E quando ia a passar a salada a mesma sensação começou a surgir na mão esquerda, com o torpor usual a preencher cada um dos meus dedos, que procuravam descanso, e que parecia inusual.
Entretanto passei a salada a Amanda, que me agradeceu.
O Sr. Silveira começou o diálogo.
- Sabes Amanda, penso que deviam mudar para uma casa maior, quando tivessem filhos.
Disse com uma expressão assertiva no rosto.
Ia a responder e com a ausência da mão direita quase que derrubei a garrafa de vinho tinto sobre a mesa.
- Sr. Silveira já falamos sobre isso.
Respondi, uma vez que o pai de Amanda já sabia a minha opinião em ter filhos e não era uma decisão a ter a curto prazo face ao facto de estar sem emprego de momento.
- Mas têm que pensar sobre isso. Respondeu a Sr.a Silveira Já não são propriamente novos e deve estar nos vossos planos terem filhos.
Aquela resposta irritou-me e com a perna direita que parecia estar a ficar também dormente, dei sem querer um pontapé na perna da mesa a que a fez abanar um pouco.
- Estás bem querido? Perguntou a Amanda com aquela resposta inusitada e com o pontapé imprevisto sobre a mesa.
- Sim amor. É que já tivemos esta conversa com os teus pais uma dúzia de vezes.
Sr.a Silveira olhou para mim com uma expressão reprovadora.
- Passa-me a garrafa de vinho João.
Pediu o Sr. Silveira.
Passei com a mão esquerda, mas o torpor fê-la desviar-se e cair sobre o colo do velho.
- Cuidado João. Foram as palavras de Amanda.
- Ai, desculpe Sr.Silveira. Respondi pelo acto de descuido.
- Ora bolas Gritou o velho olhando para mim pronto a praguejar.
Mas calou-se e Amanda foi buscar à cozinha um pano para limpar o pai.
- Peço desculpa, é que as minhas mãos doem-me um pouco e parece que estão dormentes.
- Tenha cuidado para a próxima vez. Respondeu o velho.
No final do almoço mal podia levantar a mão esquerda, e a consciência desse facto fez-me sentar no sofá da sala, de onde não me levantei nas próximas horas.
Contudo, ouvia atrás de mim, pois a mesa do almoço ficava atrás do sofá, a Amanda a dizer aos pais para não ligar de eu ter-me levantado tão cedo da mesa, porque andava cheio de problemas por estar desempregado.
Aquilo fez-me ficar furioso, porque não estava desempregado, não era assim que me sentia, mas sim um argumentista que andava sem trabalho, e que a qualquer momento podia ser contratado.
A mão esquerda ainda respondia bem aos meus comandos, mas por pouco tempo. O que me preocupava mais era a perna direita que havia deixado de responder aos meus desejos.
- Mas querido vais arranjar emprego, eu sei que sim. Ouvi a Amanda dizer na minha direcção, enquanto os pais olhavam de lado para mim, sentado no sofá a ver o programa da tarde na televisão. Embora eu estivesse ali sentado porque já tinha sérias dificuldades em caminhar.
Quando os velhos se foram despedir de mim, levantei-me com a força da perna esquerda e cambaleando despedi-me deles desculpando-me.
- Não sei o que tenho hoje mas parece que o meu corpo resolveu contrariar-me.
E ri-me alto. Já não sabia o que dizer.
O Sr. Silveira olhou de lado para mim e exclamou.
- Claro é o que dá estar desempregado. Ao que anui engolindo em seco mais uma das suas provocações mesquinhas.
Quando eles saíram fechei-me da casa de banho, enquanto Amanda arrumava o resto das coisas da mesa de almoço.
- Está tudo bem querido?
Ouvia do lado de fora ela a perguntar.
- Sim, está tudo bem Respondi-lhe.
Mas olhando o meu corpo no espelho, cambaleando com a falta da perna direita todo o meu tronco parecia vazio e não sei como me aguentava em pé. Era de facto estranha aquela sensação de adormecimento. E a voz cada vez mais rouca que se incutia pelos meus pulmões.
Assim fiquei sentado sob a sanita, em cima do tampo, enquanto o meu corpo se desarticulava, até que desapareceu na sua totalidade.
Foram os gritos da minha esposa que ouvi, quando ela me encontrou de tronco caído na casa de banho, sem qualquer força.
Depois apenas me lembro de os paramédicos entrarem em casa e me levarem ao colo e depois numa maca para o hospital mais próximo.
Lá no hospital, a conclusão a que chegamos é que eu tinha contraído o vírus dos órgãos entorpecidos, que tinha surgido de um raro mosquito de África e que obrigava que o corpo estivesse de repouso durante alguns dias.
Mas ninguém conseguia explicar as alucinações de deixar de ver o corpo, mas julga-se que isso se deve à minha doença bipolar, que pode devido ao vírus, ter levado a contrair uma psicose aguda que me levou a reviver aquilo.
Sei que é uma história estranha, e que roda o absurdo mas depois de uns dias pude sair e regressei a casa. E foi assim que tudo sucedeu.