sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Desencontro

O que me impede
de soletrar as palavras à tua boca
enquanto imersa nos teus sonhos
te sentes embalar
e mais te embalas na madrugada fora
que para mim é mais um dia
trazendo com ele o mar, o céu e a terra.

Olhamos para cima e vemos os astros
um a um em cada lugar
e à medida que as estrelas se perdem
em imemoriais desencontros
somos apenas mais um
nesta terra.

Olhando o céu azul
que se estende no horizonte
e ao olhar em frente
só o mar, só o mar
que se recolhe em cada passo da maré

E somos fogo,
ardemos no nosso desencontro
e apenas suscitamos o destino
que implacável nos junta novamente
E somos um para o outro
miragem de ver o mundo
com os nossos olhos
sendo meus os teus
e teus os meus

Que me importa

Poesia: Que me importa

Que me importa
que em teus lábios
se pronunciem pequenas rimas de amor
quando o teu coração é negro
quando a tua alma
exorta o solsticio
que quebra o mar
na sua agonia
que fende sobre a rocha
quebrando-a na sua companhia
se as tuas palavras já não são
a secreta ilusão do que nos unia

Agora, que penso assim
que a morte te levou de mim
ja nao penso como eram tardes as letras
como eram imersas e secretas
quando tudo não passava de um embuste

E assim, perdida de mim
para te encontrares fendida num qualquer
quarto obscuro
com outro homem
peço que te libertes
do nosso pranto imaculado
que te cinjas em tua dor
de um coração combalido
e que quando um dia te recordes de mim
penses que o fim foi próximo do nosso fim.

Murmurio de nós dois

Poema: Murmúrio de nós dois

O murmúrio de teus labios
contam-me singelas confidências
daqueles que os anjos escutam
no silêncio da noite

E por mais que a terra seja redonda
por mais que os astros
se incidam no mar exausto
é a tua voz que escuto ao longe

Chamando por mim
e pelo meu amor
que vem por fim
nos fios dourados na madrugada

Como quem chama por mim
como quem chama por nós
na chama imensa de nós dois
imersos na nossa saudade

Na saudade que se faz vida
que nos abraça
na terra orvalhada
e no resplendor das estrelas no céu

e imerjo
no suave múrmurio de nós dois

Os olhos azuis de Melissa



Melissa era uma pequena menina que estava a morrer com leucemia. Uma leucemia do tipo aguda que lhe minava todas as células do corpo sem que ela pudesse fazer nada para o evitar. Os seus olhos de um azul claro lúcido brilhavam como duas candeias de amor, e as duas covinhas que fazia quando sorria pareciam fazer esquecer o seu rosto magro que se apagava perante o sofrimento. No hospital onde estava internada como doente terminal ficava situado junto a um pequeno descampado semelhante a uma planície verde, onde ela imaginava brincadeiras com os outros meninos, e o rosto de compaixão dos médicos não faziam apagar o desfecho mortal que a doença teria na sua vida. As paredes do quarto eram de um azul celeste, e à sua volta apenas umas pequenas túlipas decoravam aquele espaço, cuja janela deixava entrar de mansinho os pequenos raios de sol. Ela continuava entubada a uma máquina mas os seus sentidos estavam activos, e ela conseguia ver tudo o que se passava em seu redor . Não posso precisar quando lhe foi diagnosticada a doença. Talvez num dia normal como todos os outros, mas apesar disso, o frio que se evadia no seu corpo alertava-a para a morte anunciada. Um futuro tão triste, que os seus pais combalidos choravam lágrimas de raiva pela sua condição. Choravam de mansinho sem ela ver, mas quando estavam com ela, as palavras eram de conformismo e de uma saudade imensa.
- Melissa, o pai está aqui contigo esta noite. Não deixa a menina sozinha. Dizia-lhe ao ouvido enquanto ela medicada, sentia-se planar num céu azul tal como a cor dos seus olhos.
- Sim pai cante-me uma canção. Pedia-lhe a menina.
E ele que mal conseguia soletrar um som, tal era a dor que sentia no seu peito cantava-lhe baixinho uma história de embalar.
- Era uma vez uma menina… Cantava o pai – Que tinha uns olhos da cor do mar, e que se sentia viajar por entre as estrelas que a acarinhavam. Uma a uma brilhando na noite escura… uma a uma brilhando no céu estrelado, enquanto a lua lhe sorria e dizia que tudo iria ficar bem.
A criança adormecia à medida que o pai cantava a história e sentia-se embalar e à medida que adormecia sonhava o mesmo sonho que lhe surgia em mente quando estava a meditar.
- Era uma vez uma menina…
As noites passadas em branco por parte dos pais eram de uma terna solidão. Pensando que a sua filha ficaria sozinha um dia longe deles e que iria ser devorada pela terra. Por isso, os esforços para passarem com ela aqueles curtos momentos da sua curta vida, eram feitos com afecto e carinho.
Os dias iam passando. Lá fora o vento uivante sentia-se por entre a janela do quarto, e quando mais persistente acordava a menina, que dormindo profundamente sonhava o mesmo sonho em que estava perante uma escada, que a levaria até ao céu. Uma escada em caracol que ela subia passo a passo devagar, sendo recebida pela aura de um espírito que lhe dizia que em breve tudo iria ficar bem, e para ela se alegrar, que no céu azul haveria muitos meninos para brincar com ela. Então ela sorria para o espírito, e às portas do céu, admirava o azul claro do céu imenso que soletrava palavras de descanso na sua face redonda, no qual o seu cabelo curto agora desmanchado perante a doença lhe voltava a crescer, com laivos dourados que lhe cobriam o rosto tal como era quando nada havia acontecido. Quis subir mais as escadas, para ir ter com os outros meninos, mas o espírito dizia-lhe que não porque ainda era cedo para ela ficar ali com eles para sempre. Ainda teria de se despedir dos seus pais, e dar-lhes uma palavra de consolo, para que eles compreendessem que ela iria ficar bem. Que tudo iria ficar bem. Mas talvez não entendessem o porque de uma coisa daqueles tão dramática ter ocorrido precisamente com o seu pequeno anjo de asas doiradas. Ou não quisessem outra interpretação a não ser a da fatalidade injusta da morte.
Deus leva cedo aqueles que mais ama.
Um dia que era como um dia qualquer, a morte veio à sua procura. Manifestava-se na forma de uma corrente de ar que soprava mais insidiosa no quarto. Melissa abriu os seus pequeninos olhos, e pode ver a sua face. Da morte, que perante ela lhe dizia que a tinha vindo buscar.
- Quem és tu? Perguntou, incidindo os seus olhos da cor azul como o céu límpido e sereno.
- Eu sou a morte. Disse-lhe a mensageira.
- És a morte? Sempre te imaginei de tons negros, com um busto de caveira, escondida num manto preto com uma foice na mão. Disse a menina alegrando-se por a morte não ser nada assim. Pois ela era um anjo, que tinha vindo buscar a criança e com ela leva-la para o céu.
- Hoje podes subir as restantes escadas do teu sonho! Exclamou a morte olhando para ela, iluminando-a com a sua aura de dourado que lhe alegrou o coração.
- E posso brincar com os outros meninos? Perguntou a criança.
- Sim podes! Hoje podes. Por isso te venho buscar. Para brincares com os outros meninos.
O rosto da criança alegrou-se e os seus pequeninos olhos piscaram de alegria. Podia finalmente subir as restantes escadas que a separavam das crianças e com elas brincar na longa planície verde que se estendia à sua volta.
A morte soprou-lhe num suspiro raro e ela sentiu-se levitar. O seu corpo deixou-se ficar na cama. Entretanto o seu pai entra no quarto e pergunta-lhe com quem estava a falar.
- Com a morte! Exclama a pequena menina. A morte que me veio buscar.
O seu pai olha em volta no quarto mas não vê ninguém. Nem morte nem qualquer estranha criatura que lá pudesse estar, e pensa que aquilo seria um delírio por parte da criança que estaria sob o efeito calmante dos medicamentos. Então senta-se perto dela e pega-lhe na mão. Uma mão magra e pequenina, que lhe insidia em ossos frios, que o fez esfregá-la na sua para a aquecer. Mãos frias coração quente. Como seria o coração daquela menina, que se alegrava agora pensando que num futuro não muito distante daquele, o seu sofrimento iria cessar e podia brincar com as outras crianças que moravam no céu.
O pai começa então a cantar novamente a música que a embalava em sonhos e à medida que a cantava, a criança ia adormecendo profundamente. Ela sonhava. Sonhava que estava a subir as escadas, talvez pela última vez, enquanto o pai naquele quarto de hospital via a sua face combalida face à dor a ser acarinhada por uma última vez.
- Vem Melissa, os meninos estão à tua espera.
A luz que o espírito encadeava não lhe magoava os olhos. Era de uma aura cordial e singela, e o silêncio que imperava naquele sítio fazia-lhe escutar a música de Deus.
Então subiu mais uns degraus, e chegando ao cimo viu o anjo da morte que a tinha vindo buscar aquele quarto de hospital. Ele olhou para ela e pegando-a com a mão levou a menina com ela para junto dos outros meninos. Naquela planície verde, sob o céu azul pálido as crianças brincavam correndo com os seus papagaios de papel, e gritavam para a menina vir brincar com eles.
No quarto de hospital o pai escutou a sua última expiração, sendo cessado de respirar e partindo para onde Deus a mais queria acolher.
- Marta! Gritou o pai. – A nossa menina marta. – Gritava assustado com medo de a ver perder naquele momento.
Mas a criança já não respirava e tinha partido para sempre de junto deles. Apenas o seu corpo frágil se assomava naquele quarto, enquanto o seu espírito tinha ido para outro lugar. Para um lugar onde o céu azul claro se migrava em tons de violeta para acolher aquele que Deus mais ama.
Ela tinha partido para sempre.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Terna Despedida

Poema: Terna despedida

Nos contornos de teu rosto
posso ver a Iluminação
como uma fagulha acessa
que me arde o coração

E quanto mais ela brilha
mais a tua aura é cega
e o véu que se desprende
numa maravilha sincera

De quereres estar aqui
comigo ao meu lado
enquanto eu voo
sou teu anjo alado

E por mais que a vida nos junte
neste eterna solidão
a fatídica despedida
é o pranto, a comunhão

Dos olhos que choram
o que há-de chorar
como se a morte
me viesse buscar

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Mar

Vejo nos teus olhos
a imensidão do mar
cujas ondas fluem
na sua suave brisa
e quanto mais fluem
mas se criam as marés
que nos toca a alma
E dessa imensidão
olhando o oceano
toco-te ao de leve
no teu coração
cujos teus olhos
são o imenso mundo
em lágrimas
que sinto num segundo

Somos poesia

Na noite fria
Em que o ar se invade
Somos poesia
De olhar a lua

E nessa alegria
Quando nossos corpos
Se juntam em dança
Somos poesia

E mais
Quanto mais
As ondas se tocam
Somos poesia

Alegrando
As nossas noites
Somos o frio
Do vento liberto

Somos poesia
Do tempo encoberto
Que nos leva
Para o nosso deserto

Somos poesia
Na terra orvalhada
Que se desprende das mãos
Em nossa caminhada

Somos poesia...

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Inicio

Os ramos são como corpos ausentes de vida,
que se projectam no céu.
Se são assim por incunbência de Deus,
se ele soletra em cada folha o ar que respiramos,
quem somo nós para duvidar?

Em cada expiração morremos, para depois voltar a viver.
É nesse ciclo que se perpetua a solidão do ser,
que se vê constrangido a viver,
em mais uma inspiração.

Sim Estou aqui...

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Meu amor

Meu amor
tu que surges na noite
respondendo aos meus anseios
que te tornas anjo
e perdoas meus desvaneios
vêm em meu auxílio
e toma conta de mim
liberta-me da solidão
que parece não ter fim
Quando as trevas se levantam
e dia surge na madrugada
vens tu com o teu amor
trazendo a esperança
Por isso voa baixinho
e vem para meus braços
quero-te dizer
o quanto sinto o teu abraço
 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Sempre que regresso ao teu amor

Poema: Sempre que regresso ao teu amor
Dedicado ao Manuel António Pina

Na ânsia da saudade
sempre que regresso ao teu amor
existe um pequeno fio, liberdade
que arde em imenso calor

e sempre que regresso
novamente ao teu amor
existe um verbo perdido
que declamo com fervor

e novamente regressando
ao teu amor
faço dele a voz
de um momento estar a sós

e sempre que regresso
leve como o vento
o pranto que eu sinto
sente-se para lá do firmamento

E cruzando o teu olhar
Cândido e soturno
sempre que regresso
iluminasse o meu mundo

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Anjo

Conseguia ouvir as palavras do anjo
ele que planava sobre o céu ardente
e quando por fim tombou
era mais um homem
que crucificado na terra se entregava a si de delírio
acordando num grito de susto
na madrugada do seu olhar
imerso na sua dor
a mesma dor de caminhar
e quando se fez luz
ele surgiu no céu planando
e todo o negro se exortou
da sua cordialidade
para sempre suscitou
a sua saudade
e era apenas um homem
cujas asas o faziam convalescer
para lá do ser homem
e que o faziam alcançar a liberdade
de espírito sobre a matéria
condensando a sua alma num só grito
de pranto
e quando ela se fez assim
e a aurora surgiu por fim
ele partiu mergulhando
no azul do céu
que para sempre o acolheu
que para sempre o fez libertar
de toda a sua ânsia
e se me perguntarem
para onde migrou
direi pelo azul do mar que se reflecte no céu
para onde partiu
e de onde se fez nada

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Servidões de Herberto Helder


«como se atira o dardo com o corpo todo,
com a eternidade em não mais que nada,
e depois a abolição do tempo,
e então o que respira no corpo passa à vara,
e o que respira na vara passa depois à ponta,
tu não, tu já respiraste tudo pelo dardo fora,
mudo e cego e surdo,
e és um só ponto do alvo onde respiras todo,
e tudo respira nesse ponto,
em ti, veia da terra, oh
sangue sensível» 



E quando desse dardo
toma à terra
inusitado e caótico
sentes a vibração do tempo
que passa em teu olhar perdido
que se julga constrangido
por esse pesar
e és surdo cego e mudo
para aferires da sua razoabilidade
que apenas te toca
em sensibilidade
e tudo é sangue
é terra em vão
tudo perdido tudo em sacridão
e o poema perdido
que te faz suspirar
é apenas um castigo
apenas pesar.

Corpos ausentes

Somos corpos ausentes de ternura
embalados no sentido do teu ser
do qual a vida passa
e me sinto morrer
e morro em cada instante
penumbra de um céu alado
que nos olha combalido
e nos exalta perturbado
E quando o teu abraço
me cinge e desmaia
somos a luz das estrelas
o instante que passa
Luxuriante e enegrecido
tal como um castigo
de em nossos braços
não mais perdurar
que se afastam
para no nevoeiro se perderem
em mil focos de pesar

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Poema dedicado a Pablo Neruda

Se me esqueceres
de quantas saudades tuas serão tormentos
de quantas madrugadas e firmamentos
e tu, aí
acenando com tua mão
marejada na água salgada de teu coração
Ao mar que te olho ausente
premente dessa tua saudade
fazendo-me esquecido da solidão
de um gesto perdido
e tu,
com teus braços me abraçando
com as lágrimas de teus olhos
derramando a ausência de mim,
Luz que percorre o firmamento mirrado
da ausência do negro inusitado
que me dá o verso e prosa.
Para ti,
que guardas sentindo meus gestos
e abrindo os mais de mil versos,
que por ti escrevo
na madrugada do desejo.

Fundo do mar

Observo as marés 
mirradas de luz
e do fundo do mar 
sem sobreaviso
calculo todos os peixes
que lá se encontram
na sua imensidão.
São pequenos 
médios e grandes,
e percorrem essa escuridão
de água imersa em si
misturando-se com as algas
que lá existem.
Quantos deles 
procuram a sua alma
imersos nos seus 
pensamentos.
Se é que existam
pensamentos
no profundo dos oceanos
para o qual imergem
os meus olhos.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Madrugada

Acordo em cada madrugada
e são teus olhos que vejo a primeira vez
como duas pétalas douradas
perto de um rio se consomem
em labaredas de amor.
E em cada gesto teu
é o orvalho de uma noite húmida
que me faz te abraçar
para que nos meus braços
te sintas balançar.
Terra húmida
sonho combalido 
que soa como um sino
na alegria rasgada de um gesto.

Continuação do Principe do Nada



Acordei de manha com os raios de sol a surgirem pela vidraça da janela que se encontrava ao lado da minha cama. Levantei-me da cama meio estremunhado e sentei-me nela para acordar daquela letargia matutina. Olhando lá para fora pelo meio dos estores conseguia ver os carros a afastarem-se e as folhas das árvores a balançarem com a leve brisa.
Por momentos, ao esfregar os olhos, reparei que a cama em frente à minha estava vazia.
Talvez Pessoa já estivesse acordado, mas naquele momento não havia lá nenhuma escrivaninha nem indício de alguém que pudesse ter ocupado aquela cama na noite passada. Por outro lado, não vi sombra de folhas brancas que com o vento fresco da manha a soprar pela frestas da janela pudessem esvoaçar no caderno escrito junto à cama.
Por isso levantei-me devagar, reparando na tonalidade das paredes, no formato dos móveis (um armário enorme encostado à parede e as duas camas em frente uma da outra), na atmosfera envolvente e no pátio que circundava o edifício nesse breve jardim.
Dirigi-me à casa de banho para tomar banho e enquanto atravessava o corredor e os diferentes dormitórios, era recebido com cumprimentos de bom dia pelos restantes internados que ali moravam temporariamente como eu. Reparei que alguns pareciam de facto perturbados, enquanto outros nada fazia prever porque estariam ali, o que me levantava a questão de saúde mental, e o facto de muitas vezes estar escondida na aparente sociedade, em que cada um vive imerso na sua aparente normalidade.
A casa de banho era grande. Tinha lá estado na noite passada, mas agora compreendia melhor a sua dimensão. Era disponibilizada roupa lavada num carrinho à sua saída, e havia uma série de chuveiros como num comum balneário. A roupa por sua vez era mudada todos os dias e só aceitavam roupa da instituição psiquiátrica. Havia também restrições ao uso de objectos cortantes, com a justificação clara de poderem haver acidentes propositados (ou não) por parte dos internados.
Mergulhando o rosto na bacia de água quente, levantei o tronco limpando-me a uma toalha e perguntei por Pessoa.
- Alguêm aqui conhece o Pessoa?
E sem resposta retomei.
- Sim, Pessoa, um sujeito magro de rosto alongado de fato escuro e chapéu.
E então responderam.
- Pessoa? Não estou a ver rapaz. És novo aqui? Como te chamas?
E outro.
- Pessoa, não conheço nenhum Pessoa! Como te chamas rapaz?
Sem obter qualquer resposta conclusiva apresentei-me:
- Sou o Manuel. Disse. – Entrei ontem à noite e estou num quarto com um sujeito alto de nome Pessoa. Não o conhecem? Voltei a perguntar.
- Se conhecesse eu diria. Responderam-me. – Mas não me lembro de nenhum Pessoa com essa descrição, mas se eu vir por aí, eu digo-te. Completou um dos internados enquanto fazia a barba mesmo ao meu lado.
- Rapaz, o único Pessoa desse quarto partiu à muito, muito tempo. Escutei outro dos internados dizer.
E então voltei à carga.
- Partiu á muito tempo? Como assim?
- O que queria dizer é que esteve cá internado um tal de Fernando Pessoa, mas foi á muito tempo atrás. Concluiu.
Mergulhei novamente a face na bacia de água quente e fiquei a olhar o meu reflexo no espelho. A luz psicadélica da noite anterior já não ofuscava com tanta força porque a casa de banho era inundada por uma luz exterior forte que cortava toda essa tonalidade. Pensei que a situação de ontem à noite pudesse ser outro dos meus devaneios, como sucedia no caso de Almada e de Sá. Sendo assim, ninguém senão eu mesmo conheceria Pessoa, aquela estranha personagem que escrevia sem parar numa escrivaninha junto à minha cama.

Após tomar banho fui chamado para consulta com o psiquiatra.
- Sabe porque esta aqui?
- Sei sim doutor. Mas não sou eu que ouço vozes, elas é que falam comigo. E completando perguntei.
- Ontem à noite estava uma pessoa no meu quarto a escrever numa escrivaninha. Sabe de quem se trata? Já perguntei a outros pacientes e ninguém o conhece. Por outro lado, o enfermeiro disse que não estava lá ninguém. Mas eu sinto doutor. Sinto nas palavras escritas pelo vento, naquele caderno amarrotado junto a essa cama.
O psiquiatra lança um profundo olhar sobre mim e diz que não está lá ninguém naquele quarto. Que eu estou lá sozinho.
- Você está doente rapaz e precisa de ajuda. Concluiu pensando que o meu estado piorava de dia para dia.
O psiquiatra era uma pessoa calma. O seu rosto sereno demonstrava experiência no tratamento de casos semelhantes, em que havia alucinações por parte dos pacientes. A sua face longa e esguia de barba comprida e expressão Freudiana, adivinhava alguém que gostava de estudar a mente das outras pessoas, embora por vezes isso fosse complicado, pois cada cabeça sua sentença. E o jeito do seu olhar perspicaz também notava um certo aspecto Jungiano.

Olhando para ele, incidindo os meus olhos persuasivos nos seus respondi:
- Mas eu ia jurar que estava lá uma pessoa.
Porem, o que eu tentava era arranjar justificações para o delírio. Uma vez que se tornavam quase persistentes. Pois a doença começava a tomar conta da minha mente e não se avizinhava um desfecho feliz para este caso, (embora mais tarde soubesse de fonte fidedigna que tinha havido um paciente chamado Fernando Pessoa que esteve internado naquela instituição psiquiátrica). O eterno poeta como Almada lhe tinha chamado, na noite passada, quando me disse que iria ter a companhia do poeta. E ele tinha razão.

- Vou-lhe receitar uns comprimidos para reduzir essas alucinações. Disse o doutor, escrevendo no papel a prescrição, e enquanto ele estava absorto na receita médica, Almada surgiu ao meu lado, sentando-se na cadeira vazia ao lado da minha.

- Poeta dos poetas Bernardo. Disse. – Pessoa era o poeta dos poetas. Todos eles com vidas miseráveis, sem nunca haverem reconhecido o seu génio. Perdidos, mendigando nas ruas. Quantos penetraram no profundo da alma para se fazerem voz. Nenhum como Pessoa, jamais. Quantos não codificaram a sua obra para não serem censurados. Pois eu vivi isso tudo caro Bernardo. E pobre Sá, cujo génio era maior do que o tamanho do mundo, e cujo suicídio foi para nós um relampejo de dor. Completou, e de facto, Mário Sá Carneiro tinha sido um dos grandes vultos da poesia do século XX e morrera tão jovem e com tanto talento.
- A geração Orpheu caro Bernardo. E de repente confundi-me com Bernardo Soares, um dos heterónimos de Fernando Pessoa. Quantas individualidades poderiam existir em cada um de nós. Quantos heterónimos existiriam para além das máscaras. Mesmo que a máscara fosse apenas transparência ilusória do mundo. E num relampejo de dor assumi o meu papel, perante aquele cenário.

O médico escreveu no papel os comprimidos e disse-me que iria ficar internado algum tempo nesta instituição psiquiátrica até que as coisas ficassem mais claras e a mente mais equilibrada. Era importante para mim que tivesse acompanhamento médico, como assim o referiu, e que sempre que precisasse de alguma coisa não evitasse em o consultar que estaria sempre disponível para mim.
A sua assertividade aprazou-me, e agradeci a sua disponibilidade.

Entretanto Almada havia sumido. E como era seu costume, desaparecera no nevoeiro da memória imerso nas suas palavras.

- O amor verdadeiro não tem vista para o mar.

- Doutor acredita no amor?

- Claro meu jovem. Acredito no amor, mas acredito mais na realidade. Talvez sejam conceitos incompatíveis, quando tomamos consciência que as coisas são imperfeitas e o amor é um sentimento tão puro. Não nos damos conta que são os pequenos pormenores que fazem toda a diferença.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Floresta

O silêncio que se escuta
quando coloco a minha cabeça sobre o teu peito
é do bater do teu coração 
que se põe a jeito
e posso assim te chamar
para que venhas a mim 
sendo o sentido do lugar
do nosso lugar sem fim
e o teu nome que soletro
em noites de madrugada
é do meu sentido
um puro acompanhar
e quando mais forte se torna
este meu amor por ti
é quando tu foges
para bem longe de mim
então procuro-te na floresta
onde te escondes
e imerso nos teus sonhos
para que me acordes
de sonhos, sonhos mil
são o que eu posso sentir
por te amar assim
é que a minha vida tem sentido

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Negro da luz

Negro da luz
é fogo de teus olhos
pedaços de uma alma
presa pelo fio da vida
e quando ao espelho teu
concedes as palavras
é um elo perdido
de quanto mar o ser assim
maior do que a maré 
do interior de mim
e o profundo olhar que me lanças
são ondas que se arrastam
sendo amor da areia que permeia
todas as tuas marés
numa fina forma de ti

Chamo-te como tu me chamas

Chamo-te como tu me chamas
no silêncio da noite
entrando em tuas portas 
de teu imenso interior
ondas que permeiam o mar
em teus olhos molhados
sinal da tua alma
de fonte ausente inesperada
e chamo-te como tu me chamas
na orla do mistério
quando a nossa saudade aperta
sou teu mensageiro
e digo-te como tu me amas
de um dia amar-te assim
chamo-te como tu me chamas
no interior do teu jardim
falo-te como tu me falas
numa voz de ternura
recebo-te com tu recebes
para ser tua ventura
e chamo-te como tu me chamas
num dia soar assim
peço como tu me pedes
para te amar até ao fim

Conto - " A outra vida da Morte "






Entrei em coma à umas horas atrás. Não posso precisar bem como tudo aconteceu, mas julgo que foi um acidente de viação que me atirou para esses cuidados. Embora o meu corpo esteja adormecido, os meus sentidos permanecem intactos e sinto o que se vai passando à minha volta. Recordo-me com vaga noção dos paramédicos que me auxiliaram a sair do carro que capotou na auto-estrada. Lembro-me que pisei um lençol de água e puxando pela embraiagem o carro estremeceu e capotou, perdendo-se no infinito da estrada morta, mergulhando na água. Depois a restante situação, que recordo como se a minha alma saísse do meu corpo, foi da ambulância a levar-me para o hospital mais próximo, com a sirene que exauria o seu som, às altas horas da madrugada. Era de noite. Uma noite de tempestade quando tudo sucedeu. Daquelas noites, em que as estrelas afundam os seus sinais pela terra, incidindo-se à luz pela beira dos passeios ausentes. E recordo-me do teu olhar perdido junto a mim. O que te teria acontecido? Terias sobrevivido meu amor? Mas encontrava-me em paz. Uma sensação de calma que povoava todas as minhas células, como se a alma procurasse para além da estrada que é a vida, um qualquer sinal da tua presença. O meu corpo deitado na maca do hospital parecia retalhado com a fúria do embate, quando o carro o percorreu no tempo e os nossos corpos se ergueram com essa fúria despejados junto aos vidros que se partiram. Do lado do condutor ias tu. Imersa nos teus pensamentos. Momentos antes, discutíamos o facto de aquela mulher se meter tanto nas nossas vidas. Tratava-se da minha sogra. E recordo-me de tu me dizeres que ela só queria o nosso bem. O que seria do nosso filho que ia na tua barriga. Será que teria sobrevivido? Todas estas questões martelavam na minha cabeça, mas parecia bem, em paz. Uma sensação de divino como se não tivesse acontecido nada de mais. De repente ergo o meu vulto de luz na presença de uma personagem que me apareceu. Era a morte. Olhei para ela com o vagar de uma expressão e ela ergueu a sua foice devagar como se desligasse da vida e me quisesse levar com ela. Incidiu-se sobre mim e pude ver o seu rosto, semelhante a uma caveira, com o manto preto que lhe caia sobre o tronco. Perguntei-lhe:
- És a morte e vens-me buscar?
Ela ergueu a cabeça e pude ver os seus dentes podres, com o ar que expelia e  circundava o ambiente com esse cheiro que me fez respirar profundamente a tentar acordar daquele abrutecimento. A verdade é que eu tinha bebido uns copos antes de tudo aquilo ter acontecido. Tínhamos ido jantar a casa de uns amigos em Cascais. A noite estava amena e fora antes da tempestade se ter abatido sobre a terra. Festejávamos o aniversário do Mário e os copos foram-se sucedendo sem me ter apercebido. Bebemos, dançámos um pouco abraçados, e destilamos conversa durante a noite toda até perto da uma da manhã. Ao que decidimos regressar a casa perto da uma e meia, já a tempestade se havia erguido e chovia a potes. Francisca, a mulher de Mário , perguntou-nos se queríamos dormir lá em casa. Estava preocupada com o tempo e de nos irmos fazer ao caminho. Respondi-lhe que não havia problema algum porque apanharíamos a auto-estrada e num instante estaríamos em casa. Mas o mal havia sucedido quando num lençol de água atirou as nossas vidas para uma convulsão de acontecimentos que não conseguia ainda discernir.A morte olhou-me nos olhos e senti o seu bafo quente incidir-se sobre mim. Naquele momento era só uma alma, enquanto o meu corpo se debatia num coma induzido grave que parecia ir-me tirar a vida. Foi quando ela se aproximou de mim e disse-me para a seguir. O meu vulto desprendeu-se no ar e segui-a sentindo o seu manto esvoaçar junto a mim, descobrindo todo o seu corpo de retalhos de um negro que a vestiam. O hospital era enorme e pelos longos corredores perdia-se num redundar de camas e macas que se estendiam por toda aquela ala da urgência. Via os passos apressados dos enfermeiros que calcorreavam aqueles corredores a auxiliar quem lá estava. Mas por onde nós passávamos parece que ninguém nos via. Ao fundo da porta entrava outro paciente envolto em mil cuidados como se o seu caso fosse grave, e da porta soprou um vento do exterior, que se abriu para a maca passar.
- Deixem passar por favor. Gritava um enfermeiro.
- Por favor. Continuava no seu labor empurrando a maca com o auxílio de mais dois.
- Sala da cirurgia. Gritou o médico de serviço da urgência.
Continuámos a caminhar e os nossos vultos, de mim e da morte, pareciam cruzar sem embaterem nos corpos e corredores que se estendiam à nossa volta. Ao longe pude discernir os pais de Amanda, a minha esposa e o olhar de pânico da sua mãe por aquilo ter acontecido. E por mais que pudesse observar aquilo, a sensação de paz não deixava antever o que poderia estar-se a passar.
- A Amanda? Perguntei à morte que me olhava sempre de perto, com a sua foice presa em uma das mãos enquanto a outra me dava indicações para a seguir. Caminhámos então mais uns passos e entrámos num quarto que parecia ser o quarto de Amanda. Num fosso de luz que se abateu sobre os meus olhos ela parecia estar bem. Entrámos nesse quarto e vi a sua expressão tranquila enquanto dormia.
Sim, Amanda tinha sobrevivido, mas o nosso filho? Infelizmente, o nosso filho não tinha sobrevivido ao choque e tinha havido um aborto espontâneo. A minha alma tremeu de dor e a sensação de paz pareceu desaparecer por momentos. A morte olhou ainda com mais terror e apesar de Amanda estar bem, a criança havia morrido.
- O que foi acontecer… Pensei por momentos. E ao longe ouvi o som de uma criança a dizer.
- Pai, eu estou bem… Estou no céu. Ajuda a mãe.
Estremeci com aquela revelação e senti o meu corpo vibrar, deitado na maca que acalentava a minha vida. Então a morte pegou na minha mão e disse.
- Vem comigo.
 Não sabia onde ela me queria levar, mas pressenti que era para um sítio de luz. Entretanto os pais de Amanda tinham entrado na sala e abraçavam a filha com muitos cuidados.
- O Manuel? Perguntou Amanda aos pais. O seu pai com lágrimas nos olhos, disse-lhe que estava em coma e que o médico tinha dito que teria poucas hipóteses de sobreviver. Os seus olhos inundaram-se de lágrimas e senti o seu eco vazio ecoar pelo quarto em direcção ao corredor. Quis-lhe dizer que estava bem e que em breve estaria com o nosso filho, quando a morte me disse.
- Ainda não chegou a tua vez.
Pressenti nessas palavras que tudo estaria bem. Para onde ela me quereria levar?
Percorremos os passos em direcção ao exterior do hospital. Por momentos senti-me voar e vi as luzes incidirem na nossa direcção, com focos fantasmagóricos. A morte levou-me até uma planície verde. Parecia ser uma montanha e ao longe observei a correr na minha direcção uma criança. O ambiente era de noite e não pude claramente ver  a sua silhueta, mas era de certo uma criança. E gritava:
- Pai… pai…
Por momentos os meus olhos encheram-se de lágrimas e o meu vulto amorfo encheu-se de dor. Era o meu filho que havia perdido a vida há uns anos atrás por causa de uma gripe e fora um foco de dor na nossa vida. Amanda e eu já tínhamos perdido um filho há dois anos atrás. Neste momento deveria ter seis anos de idade. Tinha sido uma morte por negligência médica, quando um surto de febre o havia atirado para a cama. Os médicos enviaram-no para casa por pensarem que o caso não era grave, mas tratava-se porém de um caso grave, e ele havia falecido por insuficiência respiratória. E agora perdíamos o nosso bebé de quatro meses na barriga de Amanda o que era também um caso de lágrimas e dor. Martin caminhou para os meus braços. Abracei-o num abraço evasivo e perguntei.
- Martin? És tu?
- Sou eu pai. Olha como é bonita esta planície verde!
Olhei em volta e disse:
- Sim, como é bonita!
A morte observava-nos calada na sua posição estática enquanto o seu manto esvoaçava ao vento. O capuz escondia-lhe a cara e Martin pareceu não notar a sua presença.
- Meu filhote! Meu filhote lindo. Exclamei a Martin.
Nos meus abraços ele pareceu esquecer-se do mundo, e no abraço firme parecia querer segurar-me de uma toda eternidade. Por momentos perguntou.
- A mãe?
Respondi-lhe que a mãe estava bem, e que tinha muitas saudades dele, e que em breve estaríamos todos juntos, como era há uns anos atrás.
- Olha pai, um papagaio…
E Martin segurava na mão um papagaio de papel que atirou ao ar fazendo-o esvoaçar. Um papagaio que parecia voar imerso sob o vento crispado que soprava vindo do longe, mas que adornava o ambiente. Então vi-o correr pelo monte com o seu papagaio e a desaparecer ao longe, como se fosse um vulto de nada.
A morte pegou-me no braço e com a outra mão disse para irmos. Teríamos que percorrer essa distância em direcção a outro lado.
O negro do céu começava a envolver-se com as luzes da madrugada. Sózinhos percorríamos essa distância até ao outro lado. Voando por cima dos edifícios podíamos ver toda a envolvência da cidade. Olhando o firmamento eram as estrelas que pouco a pouco iam desaparecendo para dar lugar à aurora. O violeta da face da noite, migrava em nossos sentidos querendo-me acordar daquela letargia. Com a sua mão, a morte indicava-me para a acompanhar e dirigimo-nos em direcção ao mar. As nossas sombras misturaram-se com as ondas serenas que envolviam o mar quebrando essa passagem da maré calma, como se o seu ruído nos quisesse acordar.
- Aonde vamos? Perguntei-lhe
 Ela apenas indicava com o seu rosto olhando em frente, cruzando o vento pardo que nos atingia a face de forma serena, e que fazia esvoaçar o seu manto. Naquele momento éramos apenas dois vultos a voar na madrugada, ao som da natureza e alegres por aquela pequena viagem. Mas estava prestes a acabar, quando nos incidimos sobre uma casa.
Eu era proprietário de uma fábrica quando tudo aconteceu. Digamos que não tratava assim tão bem os meus funcionários. A nossa estratégia era de marketing agressivo. Envoltos em campanhas, e por causa da crise, a austeridade na empresa era uma prioridade. Por isso, o salário de alguns dos funcionários não era o melhor. Recordo-me como no dia anterior tinha tratado Venâncio, um dos funcionários dizendo-lhe que o despedia se o seu rendimento não melhorasse. Ele era um dos meus vendedores, e o marketing agressivo implicava que todos eles, da área das vendas, obtivessem os melhores resultados. Descemos então sob a casa de Venâncio, uma casa velha, situada nas imediações ao fundo da cidade, na área pobre. Pode ver o seu rosto deitado na cama. Parecia adormecido pois via-o pela janela do seu quarto. Estávamos nós os dois do lado de fora  a vê-lo dormir quando a morte me disse que tínhamos de ir ao futuro para que eu pudesse ver os efeitos que teria na vida daquelas pessoas. Talvez quisesse prevenir de alguma situação. Regressámos a uma noite não tão longe daquela data, á hora de jantar. Venâncio estava a cear com os seus dois filhos. A sua esposa por sinal havia falecido há uns anos atrás com leucemia, e agora era ele sozinho que governava aquela casa. As crianças sossegadas comiam um prato de sopa, enquanto o seu pai compenetrado, as via comer. Olhava para elas com ar de carinho.
De repente o telemóvel toca. Do outro lado uma voz ríspida de ira responde à chamada. Era eu que lhe tinha telefonado, num dia em que o mês fechava, e as suas vendas não eram nada por ali além.
- Venâncio, amanhã temos de falar na fábrica. Estive a ver o seu mapa mensal e as suas vendas ficaram muito abaixo dos objectivos. Gritava-lhe com a voz irada ao telefone.
Ele apenas gesticulava dizendo que tinha feito tudo por tudo para melhorar os seus objectivos mas que a crise assim o dificultava a atingi-los.
Os filhos serenos olhavam para o prato de sopa e para o pedaço de pão que metiam à boca e não compreendiam o que se estava a passar. Mas a verdade é que aquele emprego do seu pai era muito importante para a sobrevivência da família. Sem ele o seu pai desempregado podia até perder a custódia dos filhos para a assistência social. Pois já eram precárias as condições em que viviam. E eu que pensava que o iria despedir nos próximos meses, sendo um alvo a abater na empresa devido ao seu fraco desempenho.
- Amanhã falamos melhor Venâncio, mas é importante que compreenda que se os objectivos não forem atingidos não poderá permanecer cá a trabalhar. Continuava a dizer com uma voz severa e de uma falta de respeito à sua condição humana.
Depois de desligar, reparo como ele se senta novamente à mesa, com o semblante carregado. As lágrimas escorriam-lhe sobre a face e os filhos mal davam conta disso. Deviam ter entre quatro a seis anos de idade. Depois levanta-se da mesa e vai até à sala. Abre uma garrafa de whisky e pegando num copo dá um trago. As crianças na cozinha mal davam conta do que se estava a passar, mas Venâncio devido à pressão na empresa abusava do álcool com efeitos que isso tinha para a sua saúde. Encheu então outro copo e deu outro trago na garrafa. Depois, pegou nas chaves e saiu deixando os seus filhos sozinhos em casa, despedindo-se de cada um deles com um beijo na face.
- Onde vais pai? Perguntaram-lhe as crianças.
- O pai já volta, até lá portem-se bem… Respondeu Venâncio com um aperto na garganta semelhante a um nó cego que parecia evadi-lo daquela dor.
Então saiu de casa. Eu e a morte, no alto do nosso passeio acompanhamo-lo de perto, enquanto ele se dirigia para o carro. A noite ficou de repente mais brilhante, e as estrelas do céu pareciam avisar a esse prenúncio. Venâncio partiu com o carro em direcção à estrada principal e os nossos vultos de névoa acompanharam-no. Passados uns minutos o seu carro aproximou-se da ponte 25 de Abril. Venâncio abre a porta do carro e salta cá para fora. Com as lágrimas no rosto, parecia que líamos os seus pensamentos deprimentes, que ansiavam por ajuda, mas que não havia nada a fazer. Sem emprego no futuro e com a perda á uns anos de Ângela, sua mulher a dor no seu coração era quase insuportável. Então descendo do carro e parando junto às imediações da ponte, virou-se para uma das suas bermas. As lágrimas continuavam a escorrer-lhe da face. Quis acordá-lo daqueles pensamentos que ouvia dentro da sua cabeça e que o tinham atirado para ali.
- Ele vai saltar… Foram as minhas palavras para a morte. Um ligeiro pânico instalou-se no meu peito, pois Venâncio preparava-se para saltar daquela ponte e acabar com a sua vida.
Pegou então no seu telemóvel e parecia escrever uma mensagem de despedida.
“ Digam aos meus filhos que os amo muito.” Foram as suas palavras, quando deixou cair o telemóvel no chão e saltando, apenas um som surdo se escutou percorrendo as labaredas da iniquidade, e o vento gélido que cortava a noite. Ainda gritei para que não fizesse isso, mas foi tarde de mais.
A morte olhou para mim com a sua expressão de horror e pareceu dizer-me que todas as causas têm as suas consequências, e que ainda poderia inverter aquele futuro tão negro na minha vida. Se respondesse porque era assim no emprego talvez diria que fora por causa da minha vida também não ser um mar de rosas, mas nada previa aquele acontecimento. Os objectivos agressivos da empresa tinham tirado a vida a um homem bom, se ainda houvesse deles, e Venâncio era um deles. Não porque assim o dizia, mas porque tratava os seus filhos com carinho. Mas aquele desfecho não era de um homem bom. Como podia abandonar os seus filhos e entregar-se á depressão. Mas não havia nada a fazer naquele momento ele tinha mesmo acabado com a sua vida.
A morte olhou para mim e regressámos ao presente, com a madrugada que espoliava o céu com os seus raios de azul límpido que pude ver incidindo sobre o Tejo, onde estávamos agora.
Todas as causas têm as suas consequências. Era a lição que retirava daquele acontecimento que ainda não tinha ocorrido. Subitamente fomos transportados para outro local. Cruzamos os céus com a mesma fúria com que transpondo aquele local, tínhamos visto Venâncio a saltar aquela ponte e regressámos ao presente. A madrugada que se avistava cruzava o nosso olhar com a intensidade da luz do dia que surgia. Parece que entrávamos numa floresta, pois podia ver a cor das árvores que separavam a sua luz com os fios dourados que imergiam das copas. Perguntei à morte o que estávamos ali a fazer. Ela olhando-me indicou com a sua mão para que a seguisse. Ao fundo da floresta, com os raios de luz que surgiam no chão e que furavam a pequena densidade da vegetação encontrava-se um velho perdido sentado no chão. Parecia cego, pois os seus olhos escondiam-se à luz imerso nos seus pensamentos.
- Quem és tu? Perguntei-lhe olhando nos seus olhos negros e fechados, que parecia apenas ver o que a sua alma assim absorvia.
- Eu sou tu… Disse-me, levantando a face como que procurando a voz que havia falado com ele.
- Como assim, és eu? Perguntei-lhe novamente.
O seu rosto combalido parecia antever uma miragem e levantou-se. Os seus olhos procuraram por mim e as suas mãos encontraram-me. Estava vestido com um vestido roto que lhe descia sobre os ombros em direcção aos seus pés. A sua postura côncava indicavam uma idade já bastante avançada e os fios de barba que lhe alargavam o rosto pareciam crescer em profundidade na sua face.
- Ainda bem que vieste. Tenho algo para te confidenciar.
Entregue à sua batuta o velho homem agarrava-me as mãos com firmeza e com a força do coração.
- Tens de te entregar ao coração. Disse-me por fim. – Senão irás ficar sozinho.
Compreendi por aquelas palavras que aquele cego simbolizava a cegueira com que conduzia a minha vida, imerso no trabalho e pelos resultados atrozes que a empresa necessitava, e por isso respondi-lhe.
- Mas eu não consigo. Apenas penso no trabalho e Amanda de certo me irá abandonar um dia.
- Não te abandonará como fizeram os teus pais quando eras pequeno.
E na verdade eu era órfão de pai e de mãe. Eles tinham-me abandonado mal eu era criança para um orfanato e a condução da minha vida tinha sido feita com alguns constrangimentos a nível pessoal, passando por cima de quem se atravessasse no meu caminho. E isso era óbvio pelo facto de levar uma pessoa a cometer suícidio, como era o caso de Venâncio, algo que eu ainda podia modificar. A minha vida tinha sido conduzida pela força do poder, e ter aquela fábrica era a minha vida, mas não era o suficiente, porque o que interessa é quanto amas, e não o poder que tinha na minha vida.
Ele pegou com mais força as minhas mãos e disse-me olhando na face.
- No futuro irás ter três filhos. Eles serão a tua força, mas todos eles te abandonarão. A tua tirania irá fazer com que se afastem de ti e por isso terás de ser manso pelo coração. Terás de mudar a tua atitude.
Acenei com a cabeça dizendo que o compreendia, mas ainda estava imerso no facto da empresa ser a minha vida. A morte olhava para nós serena. Não compreendia como aquela morte podia ser tão serena, de olhos pregados no nosso diálogo e de manto quieto à intempestividade que se levantava agora no ar, com a força do vento que soprava ao fundo daquela floresta.
O velho homem pegou nas minhas mãos e deixou-as cair no meu colo. Entregue à minha postura.
- Três filhos… Pensei, o que me alegrou o coração. A morte de dois deles como tinha sucedido combalia-me de dor, mas ir ter três era de um profundo ardor de alegria que suscitava na minha alma.
- Tentarei ser mais compreensivo com a vida.
Disse ao estranho homem, que parado parecia escutar o som dos pássaros ao longe. Com o vento que se levantou, a morte disse-me para partirmos. Tínhamos falado com o meu Eu do futuro e agora era tempo de partir. De partir em direcção ao hospital onde o meu corpo estava preso aquele coma. Seria altura de despertar para a vida. Todas aquelas indicações que me haviam sido dadas eram a prova de que uma vida pode ser modificada para melhor, se a alma compreender as razões pelo que muitas vezes conduzimos mal a nossa vida.
Agradeci à vida por aquele manifesto, mas na verdade teria de agradecer aquela pequena morte que me havia feito compreender todo aquele processo. Então levantamos voo em direcção ao hospital, cruzando os céus. Pude ver o meu rosto novamente reflectivo na água do mar enquanto voamos sobre a fonte cristalina dos oceanos e senti os fios de laivo dourada embaterem sob a minha névoa enquanto cruzamos o céu naquela madrugada que dava lugar a um novo dia.
No hospital continuava tudo na mesma. Sob a minha cama e ao meu lado podia ver Amanda segurando a minha mão à espera que eu acordasse. Estava pousada na minha direcção sentada numa cadeira à minha beira e escutava com os seus ouvidos o bater do meu coração incidindo-se na máquina ao seu lado.
- Amanda não te queres deitar um pouco. Perguntou-lhe a mãe que entrara no quarto.
- Não mãe… quero estar aqui quando Manuel acordar.
Á saída pude ver os rostos constrangidos dos seus pais, que aguardavam que a filha saísse um pouco cá para fora para descansar. Com pena pude sentir os seus semblantes carregados por aquela tragédia que havia ocorrido.
A morte olhou por uma última vez para mim e compreendi que só veria o seu rosto depois de muitos anos. Por sinal, aquelas revelações tinham-me feito compreender que a vida era afinal o outro lado da morte e que os seus conselhos induzidos, eram uma forma de encontro com o melhor que existe em nós. Pude compreender que a perda dos meus filhos tinha uma razão maior, mas que eles estavam bem. A esta altura Martin corria com o seu papagaio por aquela planície verde, brincando como se não houvesse amanhã, e Venâncio ainda com vida, esperaria um melhor reconhecimento apesar das suas dificuldades nas vendas, mas com algum apoio poderia modificar. Não era necessário que ele perdesse o emprego, já que a sua vida já era repleta de tantas dificuldades. Quanto ao meu Eu no futuro, teria de modificar a minha atitude em relação às pessoas que mais amava, que seria Amanda e os filhos que iríamos ter para minha alegria, tal como me tinha confidenciado.
Então o meu corpo começou a tremer. Uma névoa estranha invadiu a minha alma, e um cortejo de luz incidiu sobre os meus olhos.
Senti o corpo de Amanda debruçado sobre mim e foi quando acordei, abrindo os olhos suavemente. Estava naquele quarto de hospital e Amanda olhou para mim com um olhar de ternura chamando os enfermeiros.
- Amanda tive um sonho lindo! Foram as minhas palavras para ela.
Ela abraçou-me enquanto os enfermeiros iam na minha direcção para que pudessem ver o que se passava. Tinha acordado daquele coma.

FIM