Tinha
adormecido quando os primeiros focos de luz surgiram imersos pela madrugada. O
seu brilho fluía em nossa casa, luzindo em ondas da manhã. A claridade surgia
no horizonte, iluminando o céu ainda escuro. Acordei com o barulho dos carros.
A janela semi-fechada da noite anterior deixava entrar o ar da manhã, que
rejubilava ao cheiro da terra molhada. Os traços de cor permeavam os pingos que
desciam lentos junto às paredes ao serem atravessados pela luz.
Levantei-me
e olhei lá para fora.
A rua
reflectia a atmosfera límpida que brilhava com o tom das partículas de água que
evaporavam com os primeiros raios do Sol da manhã. À medida que o dia surgia, o
céu ainda nublado imergia da luz do horizonte.
Ao
longe, um avião surge no céu em direcção ao seu destino. Sentindo nele um
pássaro que plana no céu, e se perde em seu sonho, nos dos seus tripulantes, e
dos que em terra se despediram limpando em suas faces, as lágrimas da partida.
Era dia de faculdade, e ao olhar o
adiantado da hora despedi-me da minha Avó.
Ao
dirigir-me para a paragem de autocarro, as ruas ainda mostravam o estado do
temporal da noite passada, com as poças de água que a percorriam em toda aquela
avenida que a separava de nossa casa.
Os
passeios abrigavam os trajectos dos carros que surgiam e se tornavam em som
súbito, e à medida que descia, recordava os teus olhos.
A
Carta.
Como
escreveria a carta?
A minha
Avó tinha-me incentivado a escrever-te, mas não sabia o que dizer.
Dentro
de mim, o espaço vazio queria-te compor as mais belas palavras, porém todas
insuficientes para declarar a minha admiração. E por outro lado, apesar da
minha criatividade, a timidez declinaria o que irias pensar ou como irias
reagir.
Recordei
as palavras do poeta que diria que as Cartas de Amor são ridículas, mas que é
apenas Ridículo quem não as têm. Quem nunca partilhou esse momento em que as
palavras nos tocam a alma e nos fazem sonhar.
Na altura eras uma cantora com algum
sucesso na Índia, e que pensava em editar o seu primeiro álbum. Era esse o teu
sonho. Por isso poderias pensar que era mais um doidinho que se tinha
apaixonado e que resolvera escrever. Talvez nem me responderias. Ou pedisses a
alguém para o fazer em teu lugar.
Se não
respondesses seria apenas uma carta cujas palavras se perderiam no trilho da
vida, mas que imersas ao vento, as suas folhas proclamariam o seu incenso nesse
breve história.
Não
teria nada a perder com a ausência da tua resposta.
Recordava
o que a minha Avó falara em relação aos caminhos da vida, cuja forma inesperada
é traço do seu destino.
O autocarro chegou à paragem e as
pessoas dirigiram-se a ele em passos lentos. Em alguns minutos se faria o
trajecto até ao Campo Grande, e por isso sentei-me num dos bancos junto à
saída.
Durante
o percurso, retirei um pequeno caderno onde ia escrevendo alguns pensamentos.
Ao
olhar a janela, a eternidade preenchia o meu ser. Era dela que surgia o amor da
forma pura. Sendo esse que em comunhão com a terra o faz coração do homem.
Buscava inspiração nos trajectos da cidade, nas ruas cuja viagem rápida fazia
aparecer em focos momentâneos.
Como
iniciaria a carta? Pensei.
Se te
dissesse que te conhecia da eternidade, como se as nossas almas fossem
manifesto de um Eu Superior, destinadas à mais bela história de amor, dirias
que era doidinho.
Apesar
do teu tom de pele morena relembrar a típica mulher da Índia, e o Hinduísmo ser
a principal religião do país, sendo o povo ligado aos seus ancestrais, poderias
não acreditar nessa espiritualidade. Por isso teria que te cativar pelas tuas
próprias palavras, tal como o som da tua música.
Olhei o
céu azul.
Se
naquele momento o olhasses tal como eu, reconhecerias o nosso mundo, o azul da
nossa alma.
Queria
acreditar nessa casualidade. No caminho que se havia unido entre nós, e com a
vida.
Dir-te-ia,
que é daquelas nuvens que são feitos os sonhos, cuja luz as ilumina em seu
interior, como se nos abraçassem para além do espaço, em direcção ao sagrado.
Ansiava
por essa luz na minha vida. Queria absorvê-la em todo o meu ser, e que ela se
tornasse felicidade.
Por
isso estava disposto a tentar apesar da minha timidez.
Em cada
dia de vida perdemos sempre alguma coisa que se perde na memória, mas apenas
compreendendo a efemeridade do tempo é que estaremos dispostos a viver.
Apenas
podias não responder ou a tua resposta ser tão vaga que daí se perdesse o
sentido especial.
Ao longe avistei o Campo Grande. Os
carros formavam fila em mais um inicio de semana de trabalho. Desci o autocarro
e dirigi-me para a faculdade.
Durante o dia recordei as palavras
da minha Avó, que imersas pelo som da chuva, se confundiam com as memórias da
sua vida.
Os seus
olhos brilhavam com os meus ao teu sorriso. Tal como os teus que eram candeias
que iluminavam em laços dispersos pelo tempo.
Do
tempo em que o infinito nos havia reencontrado.
O
coração não escolhe. Rende-se ao encanto do talento e das paixões, sem
perguntar nem questionar.
Olhei
para o caderno, e embora algumas das frases que havia escrito fossem escassas
para explicar essa admiração, deixo-as aqui para que as leias.
“ Se o amor arde, é do meu coração que
surgem as mais intensas labaredas, que me consomem a alma em busca do teu
sorriso.”
A frase
era de um romantismo exacerbado.
Queria
escrever algo mais simples que captasse o sublime do momento.
“ Somos dois pássaros que regressam à vida
para se encontrarem no tempo perdido, para o qual o amor se flui em céu azul. “
Senti o
seu sentido demasiado metafórico, e não captaria a essência do que queria
transmitir.
“ Nos teus olhos senti a música que existia
dentro de ti e da tua voz a tua inspiração. “
No amor tornamo-nos ridículos.
Somos o
testemunho do ridículo e ridicularizamo-nos.
De que
vale viver se não estivermos disposto ao ridículo?
E nessa
autenticidade do ridículo que encontramos a nossa autenticidade, pois tentamos
esconder a nossa fragilidade, para sermos aceites numa aparente normalidade que
nos é imposta pela sociedade.
Palavras… Apenas palavras. Palavras
ao vento que já existiam antes de as pronunciarmos.
Antes que
eu te escrevesse, elas já eram tuas. Sentis-te como te faziam olhar o mundo com
outro brilho, e nesse instante tu eras a própria criação. O infinito da tua
essência recordava-te como dentro de ti elas escutavam o teu coração e a ele se
dirigiam em sua melodia.
Ansiava pelo sublime. Ao tentar
encontrar algo que te fosse comum, procurei informação sobre a tua música. Ao
aceder a uma das canções que havias composto escutei os seguintes versos.
“ Esperei toda a vida
Por ti, Cavaleiro
Que trazes em teu dorso
As palavras quentes.
Nessa manha de chuva
Foi noite de madrugada
O sonho que revivi
Embora acordada.
Sonhei com a noite escura
Com a chuva da manha
Com a escuridão do céu
E tua eterna presença
Vêm Cavaleiro
Recorda-me de ti
Suscita em tua alma
Que viveu sempre por mim
Vem abraçar tua donzela
Que espera teu regresso
São brumas, é nevoeiro
Tu és meu Cavaleiro. “
Essa letra suscitou a minha
admiração pois senti que a vida me transmitisse uma mensagem. Essa coincidência
era um oráculo que apelava ao teu encontro.
Talvez
a Avô estivesse correcta.
Tudo
tivesse o seu sentido mas no momento não o pudéssemos compreender.
Tudo na
vida remonta a um tempo que passou, embora o futuro seja algo desconhecido.
Perpetuamos o tempo que vive da eternidade, sem tempo.
Tudo
têm um sentido e queria acreditar nisso.
Bastava
acreditar em mim.
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