Naquela
altura tinha vinte e poucos anos, e estudava na faculdade de letras de Lisboa.
Estaria a concluir o mestrado, que face à sua dificuldade permanecia um desafio
e ia ao encontro com o que ambicionava fazer na minha vida que seria escrever.
A minha
criatividade necessitava de ser expressa através do papel, pois só assim
conseguiria clarificar o turbilhão de ideias que apenas as palavras poderiam
transmitir.
Por
isso partira cedo de Coimbra para ir morar com a minha Avô num pequeno
apartamento na zona dos Olivais, tendo concluído os meus estudos secundários em
Lisboa, e ingressando mais tarde na faculdade.
O
apartamento situava-se numa das torres à entrada de Lisboa, num bairro
sossegado habitado na sua maioria por idosos, pois os jovens haviam partido á
muito tempo de casa dos pais à procura de melhores oportunidades.
Do
sexto andar ao olhar ao longe a zona da Portela, podia ver da janela do meu
quarto os aviões a levantarem voo em direcção ao seu destino.
Imaginava-os
pássaros repletos de esperança desaparecendo no céu, tornando-se um ponto
longínquo no horizonte. Para além das nuvens que imitam figuras na sua evaporação.
Dessas
nuvens são feitos os sonhos. Dos quais também eu pensava emigrar um dia. Sonhos
idealizados no pensamento, quantos deles se aluem sem concretização, em
lágrimas que mirram na atmosfera.
O
retrato de uma época, daquele bairro em que a saudade permanece secreta no
coração, e em que a nostalgia não é uma doença mas uma bênção para os que
nutrem de boas recordações. Sendo dessa serenidade que do seu bom senso surge o
testemunho e herança aos que partiam.
Por
isso, o bairro era o contraste do que fora outrora, cuja vida fluía alegremente
em todo o seu esplendor. Agora, os passeios degradados eram o sinal de vidas
que esperavam o seu fim.
Nem a
chuva abençoada daqueles dias frios, parecia alegrar e dar um sentido diferente
ao deserto que se fazia sentir durante o ano. Eram as ruas desertas que se
perdiam na sua aridez, confundindo-se com as histórias antigas, jeitos traçados
de outra época.
Apesar
disso, gostava de ouvir o barulho dos pingos que caiam incólumes nas janelas, e
ao olhar cá para baixo, a vertigem das gotas que se incidem em direcção à
terra, demonstravam como tudo tinha mudado, quando as árvores majestosas e
zonas verdejantes se abrigavam a céu aberto, e sorriam para a chuva comungando
da sua vitalidade.
Recordei
o som do vento que surgia nas folhagens abanando os ramos que crispavam em
movimentos rápidos. Quando as folhas secas decoravam o passeio e os passos se
tornavam pequenos estalitos ao caminhar, sendo a vida criada desse som para se
escutar no silêncio.
A
melancolia lembrou em meu olhar um passado feliz. Memórias seriam recordações
vivas gravadas na minha alma, despedindo-se desse tempo,
Talvez
a chuva suscita-se esses estados de alma.
Olhando
a minha Avó serena, indagava como em jovem já me incidia a esses estados. Ela
idosa parecia calma em relação à sua vida, mesmo que os dias passassem um a um
em direcção ao inevitável destino. Ciente de que o estado havia depositado
pouco tempo, e a existência fosse em mim uma curta passagem.
Os meus
dias eram passados na faculdade para onde ia durante o dia, regressando à noite
a casa.
A minha
avó era viúva como a maioria das senhoras da sua idade, pois quis a vida que os
maridos partissem primeiro para lhes dar lugar nos bancos de jardim onde ela
passava as tardes a recordar os tempos passados. A sua face não a fazia
esconder o descontentamento com a vida, e as suas cicatrizes, eram feridas que
a faziam chorar durante a noite. Tentava alegrá-la com as histórias da
faculdade que suscitavam a sua curiosidade, reconfortando-a e fazendo-a esquecer
das suas doenças e preocupações, de seus sonhos perdidos nos anseios e sua
solidão.
No dia
do chá convidava as suas amigas lá para casa, e a alegria animava um pouco
aquele serão, quando falavam dos filhos e dos netos, dos que haviam emigrado e
do que havia sucedido aos seus face aos flagelos que existiam na nossa
sociedade.
Naquele dia de Inverno chovia e o
vento soprava forte provocando uivos de som que se embutiam pelas paredes e
surgiam pelas frestas de casa. As ruas lá fora protegiam-se alheias ao tempo,
dissuadindo-se do cinzento que povoa o céu, e unindo-se ao azul que fugia mas
era índole de seu ser.
Os
relâmpagos ofuscavam em luzes nos apartamentos que pareciam findar em breves
segundos reticentes ao desfecho. Do nosso andar podia ver a imensidão dos
prédios que se perdiam ao fundo, paralelos e perpendiculares, cujas torres se
dirigiam ao céu abrigando a vida, em todos os seus traços e resguardando a sua
protecção.
Os
candeeiros de rua em baixo daquele andar, criavam sombras que caíam sobre os passeios,
tornando-se círculos que abrigavam o fluir da chuva e o passar do tempo. Em sua
forma característica abanavam com a força do vento perpetuando o movimento em
dança.
Nesse
momento, um trovão dissipou em sua força a luz da nossa casa, e remeteu o bairro
à escuridão.
Nesse
dia em que Lisboa parecia imersa num dilúvio que fazia estremecer as suas
casas, e cujo céu castigava a terra pela sua vaidade.
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