quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Destino (continuação 6 do conto)



Tinha adormecido quando os primeiros focos de luz surgiram imersos pela madrugada. O seu brilho fluía em nossa casa, luzindo em ondas da manhã. A claridade surgia no horizonte, iluminando o céu ainda escuro. Acordei com o barulho dos carros. A janela semi-fechada da noite anterior deixava entrar o ar da manhã, que rejubilava ao cheiro da terra molhada. Os traços de cor permeavam os pingos que desciam lentos junto às paredes ao serem atravessados pela luz.
Levantei-me e olhei lá para fora.
A rua reflectia a atmosfera límpida que brilhava com o tom das partículas de água que evaporavam com os primeiros raios do Sol da manhã. À medida que o dia surgia, o céu ainda nublado imergia da luz do horizonte.
Ao longe, um avião surge no céu em direcção ao seu destino. Sentindo nele um pássaro que plana no céu, e se perde em seu sonho, nos dos seus tripulantes, e dos que em terra se despediram limpando em suas faces, as lágrimas da partida.

            Era dia de faculdade, e ao olhar o adiantado da hora despedi-me da minha Avó.
Ao dirigir-me para a paragem de autocarro, as ruas ainda mostravam o estado do temporal da noite passada, com as poças de água que a percorriam em toda aquela avenida que a separava de nossa casa.
Os passeios abrigavam os trajectos dos carros que surgiam e se tornavam em som súbito, e à medida que descia, recordava os teus olhos.
A Carta.
Como escreveria a carta?
A minha Avó tinha-me incentivado a escrever-te, mas não sabia o que dizer.
Dentro de mim, o espaço vazio queria-te compor as mais belas palavras, porém todas insuficientes para declarar a minha admiração. E por outro lado, apesar da minha criatividade, a timidez declinaria o que irias pensar ou como irias reagir.
Recordei as palavras do poeta que diria que as Cartas de Amor são ridículas, mas que é apenas Ridículo quem não as têm. Quem nunca partilhou esse momento em que as palavras nos tocam a alma e nos fazem sonhar.

            Na altura eras uma cantora com algum sucesso na Índia, e que pensava em editar o seu primeiro álbum. Era esse o teu sonho. Por isso poderias pensar que era mais um doidinho que se tinha apaixonado e que resolvera escrever. Talvez nem me responderias. Ou pedisses a alguém para o fazer em teu lugar.
Se não respondesses seria apenas uma carta cujas palavras se perderiam no trilho da vida, mas que imersas ao vento, as suas folhas proclamariam o seu incenso nesse breve história.
Não teria nada a perder com a ausência da tua resposta.
Recordava o que a minha Avó falara em relação aos caminhos da vida, cuja forma inesperada é traço do seu destino.
           
            O autocarro chegou à paragem e as pessoas dirigiram-se a ele em passos lentos. Em alguns minutos se faria o trajecto até ao Campo Grande, e por isso sentei-me num dos bancos junto à saída.
Durante o percurso, retirei um pequeno caderno onde ia escrevendo alguns pensamentos.
Ao olhar a janela, a eternidade preenchia o meu ser. Era dela que surgia o amor da forma pura. Sendo esse que em comunhão com a terra o faz coração do homem. Buscava inspiração nos trajectos da cidade, nas ruas cuja viagem rápida fazia aparecer em focos momentâneos.
Como iniciaria a carta? Pensei.
Se te dissesse que te conhecia da eternidade, como se as nossas almas fossem manifesto de um Eu Superior, destinadas à mais bela história de amor, dirias que era doidinho.
Apesar do teu tom de pele morena relembrar a típica mulher da Índia, e o Hinduísmo ser a principal religião do país, sendo o povo ligado aos seus ancestrais, poderias não acreditar nessa espiritualidade. Por isso teria que te cativar pelas tuas próprias palavras, tal como o som da tua música.
Olhei o céu azul.
Se naquele momento o olhasses tal como eu, reconhecerias o nosso mundo, o azul da nossa alma.
Queria acreditar nessa casualidade. No caminho que se havia unido entre nós, e com a vida.
Dir-te-ia, que é daquelas nuvens que são feitos os sonhos, cuja luz as ilumina em seu interior, como se nos abraçassem para além do espaço, em direcção ao sagrado.
Ansiava por essa luz na minha vida. Queria absorvê-la em todo o meu ser, e que ela se tornasse felicidade.
Por isso estava disposto a tentar apesar da minha timidez.
Em cada dia de vida perdemos sempre alguma coisa que se perde na memória, mas apenas compreendendo a efemeridade do tempo é que estaremos dispostos a viver.
Apenas podias não responder ou a tua resposta ser tão vaga que daí se perdesse o sentido especial.
            Ao longe avistei o Campo Grande. Os carros formavam fila em mais um inicio de semana de trabalho. Desci o autocarro e dirigi-me para a faculdade.

            Durante o dia recordei as palavras da minha Avó, que imersas pelo som da chuva, se confundiam com as memórias da sua vida.
Os seus olhos brilhavam com os meus ao teu sorriso. Tal como os teus que eram candeias que iluminavam em laços dispersos pelo tempo.
Do tempo em que o infinito nos havia reencontrado.
O coração não escolhe. Rende-se ao encanto do talento e das paixões, sem perguntar nem questionar.
Olhei para o caderno, e embora algumas das frases que havia escrito fossem escassas para explicar essa admiração, deixo-as aqui para que as leias.
“ Se o amor arde, é do meu coração que surgem as mais intensas labaredas, que me consomem a alma em busca do teu sorriso.”
A frase era de um romantismo exacerbado.
Queria escrever algo mais simples que captasse o sublime do momento.
“ Somos dois pássaros que regressam à vida para se encontrarem no tempo perdido, para o qual o amor se flui em céu azul. “
Senti o seu sentido demasiado metafórico, e não captaria a essência do que queria transmitir.
“ Nos teus olhos senti a música que existia dentro de ti e da tua voz a tua inspiração. “

            No amor tornamo-nos ridículos.
Somos o testemunho do ridículo e ridicularizamo-nos.
De que vale viver se não estivermos disposto ao ridículo?
E nessa autenticidade do ridículo que encontramos a nossa autenticidade, pois tentamos esconder a nossa fragilidade, para sermos aceites numa aparente normalidade que nos é imposta pela sociedade.

            Palavras… Apenas palavras. Palavras ao vento que já existiam antes de as pronunciarmos.
Antes que eu te escrevesse, elas já eram tuas. Sentis-te como te faziam olhar o mundo com outro brilho, e nesse instante tu eras a própria criação. O infinito da tua essência recordava-te como dentro de ti elas escutavam o teu coração e a ele se dirigiam em sua melodia.

            Ansiava pelo sublime. Ao tentar encontrar algo que te fosse comum, procurei informação sobre a tua música. Ao aceder a uma das canções que havias composto escutei os seguintes versos.


“ Esperei toda a vida
Por ti, Cavaleiro
Que trazes em teu dorso
As palavras quentes.

Nessa manha de chuva
Foi noite de madrugada
O sonho que revivi
Embora acordada.

Sonhei com a noite escura
Com a chuva da manha
Com a escuridão do céu
E tua eterna presença

Vêm Cavaleiro
Recorda-me de ti
Suscita em tua alma
Que viveu sempre por mim

Vem abraçar tua donzela
Que espera teu regresso
São brumas, é nevoeiro
Tu és meu Cavaleiro. “

            Essa letra suscitou a minha admiração pois senti que a vida me transmitisse uma mensagem. Essa coincidência era um oráculo que apelava ao teu encontro.
Talvez a Avô estivesse correcta.
Tudo tivesse o seu sentido mas no momento não o pudéssemos compreender.
Tudo na vida remonta a um tempo que passou, embora o futuro seja algo desconhecido. Perpetuamos o tempo que vive da eternidade, sem tempo.
Tudo têm um sentido e queria acreditar nisso.
Bastava acreditar em mim.
           

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